Marinha da Rússia está por trás de muitos dos possíveis crimes de guerra cometidos na Ucrânia

Ataques com mísseis de cruzeiro estão entre as principais causas de mortes de civis na guerra em andamento no leste europeu

As denúncias de crimes de guerra que pesam contra as forças armadas da Rússia na Ucrânia têm se acumulado desde o início do conflito. São casos que vão desde o massacre de Bucha e o ataque ao teatro de Mariupol até bombardeios contra hospitais, escolas e um shopping center. No início de agosto, Kiev disse investigar mais de 26 mil possíveis crimes de guerra. Por trás de muitos deles está a Marinha russa e seus mísseis de cruzeiro, que podem ser lançados de navios ou submarinos, têm um alcance de milhares de quilômetros e vêm se destacando no arsenal russo durante o conflito, muitas vezes atingindo alvos civis.

Foi um desses mísseis que matou 23 pessoas na cidade de Vinnytsia no dia 15 de julho. O Kalibr, como é popularmente conhecido, é uma família composta de três modelos: o SS-N-30A (ou 3M14 Kalibr) é um míssil de cruzeiro de ataque terrestre lançado do mar, enquanto o SS-N-27 é antinavio, e o 91-R, antissubmarino.

Na Ucrânia, o protagonista vem sendo o 3M14 Kalibr, que “tem alcance estimado de cerca de 1,5 mil a 2,5 mil quilômetros e tornou-se um dos pilares das capacidades de ataque ao solo da Marinha russa”, segundo o site especializado Missile Threat.

Embarcações da Frota do Báltico da Marinha russa capazes de disparar mísseis de cruzeiro (Foto: Facebook)

O 3M14 Kalibr que atingiu Vinnytsia foi disparado por um submarino da Marinha russa, e Moscou jamais omitiu essa informação. O que os russos contestam é o alvo. Enquanto a Ucrânia alega que os 23 mortos eram civis, inclusive crianças, a Rússia diz que o bombardeio teve objetivo militar.

“No momento do ataque, era realizada uma reunião do comando da força aérea ucraniana com representantes de fornecedores estrangeiros de armas”, disse o Ministério da Defesa russo, segundo o jornal de Hong Kong South China Morning Post. “Como resultado do ataque, os participantes da reunião foram destruídos”.

O argumento dos russos, porém, jamais foi aceito, até porque não há qualquer relato de um fornecedor estrangeiro morto na guerra até aqui. O presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky disse que o ataque foi um “ato aberto de terrorismo”, segundo a rede britânica BBC. “Todos os dias, a Rússia mata civis, mata crianças ucranianas, realiza ataques com mísseis a instalações civis onde não há alvo militar”, afirmou.

A posição é compartilhada por Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia (UE). “Esta atrocidade em Vinnytsia é a mais recente de uma longa série de ataques brutais contra civis e infraestrutura civil”, diz comunicado assinado por ele e reproduzido à época pela rede alemã Deutsche Welle. “Não pode haver impunidade para violações e crimes cometidos pelas forças russas e seus superiores políticos”.

Cenário semelhante ao de Vinnytsia foi identificado no dia 1º de julho na cidade de Serhiivka, próxima a Odessa, que abriga o principal porto da Ucrânia e de onde sai a maioria dos carregamentos de grãos que o país exporta.

Naquele dia, um ataque aéreo russo atingiu um prédio de apartamentos que foi parcialmente destruído. Vinte e uma pessoas morreram no ataque, e o governador regional disse na ocasião que os disparos partiram do Mar Negro, segundo a agência Reuters. O bombardeio ocorreu poucas horas depois de Moscou perder para Kiev o controle da Ilha da Cobra, justamente no Mar Negro.

Também das proximidades de Odessa, a cidade de Mykolaiv foi igualmente atingida por um bombardeio russo no dia 7 de março, com a guerra ainda no início. Embora os alvos prioritários fossem militares, bairros residenciais foram atingidos, e o número de vítimas civis é incerto. Mais uma vez, a arma usada foi o 3M14 Kalibr disparado por embarcações da Marinha russa.

“Eles atacaram nossa cidade de forma desonrosa e cínica, enquanto as pessoas dormiam”, declarou na ocasião Vitaliy Kim, um morador de Mykolaiv, segundo o jornal The New York Times. “Diga a Putin que ele está matando pessoas pacíficas. Ele acha que devemos nos submeter a ele? Quero que ele passe pelo que passei nesta manhã”, disse Olga Kololyova, que também testemunhou o ataque aéreo.

Tais episódios expõem um padrão nas atrocidades russas. Catherine Russell, diretora executiva do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), disse em agosto que a maioria das crianças vitimadas por ataques das forças de Moscou foi atingida por armas explosivas, categoria na qual se encaixam os mísseis de cruzeiro. Por maior que seja a precisão desses armamentos, eles “não discriminam entre civis e combatentes”, especialmente em áreas povoadas, nas palavras dela.

Abaixo, veja um vídeo de um míssil Kalibr sendo disparado pela Marinha russa na guerra civil da Síria.

Crimes no mar

O próprio porto de Odessa também foi palco de um ataque atribuído à Marinha russa que pode vir a ser enquadrado na categoria dos crimes de guerra. No dia 23 de julho, uma estação de bombeamento foi atingida, causando um pequeno incêndio, segundo a Deutsche Welle. As forças armadas ucranianas identificaram a arma usada como sendo um míssil Kalibr.

“Infelizmente, algumas pessoas estão feridas. A infraestrutura portuária está danificada”, disse o governador regional de Odessa, Maksym Marchenko, sem dar detalhes da gravidade dos ferimentos.

O ataque ocorreu poucas horas depois de Kiev e Moscou terem assinado um acordo para retomar as exportações de grãos ucranianos partindo de Odessa. Até então, os navios cargueiros locais estavam impossibilitados de transportar o alimento devido à presença da Marinha russa nas águas da região, tornando a navegação muito perigosa.

Há relatos inclusive de ataques a navios mercantes, segundo a Associação Internacional de Advogados (IBA, na sigla em inglês). Kiev diz ter registrado, até 15 de abril, 11 navios de bandeira estrangeira danificados em bombardeios da Marinha russa. Três navios mercantes incendiaram e afundaram, dois marinheiros morreram, 11 marinheiros ficaram feridos e cinco navios mercantes estrangeiros e quatro dragas foram capturados.

Segundo a IBA, esses casos, se confirmados, desrespeitam a Convenção de Genebra. “Navios mercantes, que são objetos civis, não podem ser atacados. Eles perdem sua proteção apenas se forem usados ​​para fins militares”, diz relatório da IBA publicado no dia 14 de junho. “Assim, os ataques das forças russas a navios mercantes seriam classificados como crimes de guerra”.

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