Por que os voluntários estrangeiros se alistam na Legião Internacional Ucraniana

Artigo explica o que leva as pessoas e abandonar o emprego e a deixar a família para trás para embarcar numa tarefa tão arriscada

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do think tank Royal United Services Institute (RUSI)

Por Naira Arutyunova e Marco Bocchese

Anunciada ao mundo pelo presidente Volodymyr Zelensky em 27 de fevereiro de 2022, e formalmente estabelecida dois dias depois, a Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia (também conhecida como Legião Internacional Ucraniana ou Legião Estrangeira Ucraniana) permitiu que milhares de voluntários estrangeiros se juntassem à lutar contra os invasores russos. Dito isto, a criação de corpos militares que permitam o recrutamento e integração de voluntários estrangeiros nas forças armadas de um país não é uma novidade em si.

Desde a Legião Estrangeira Francesa, fundada em 1831 e ainda em serviço, até às Brigadas Internacionais ativas durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), existem numerosos exemplos em que o governo de um país em guerra aceitou prontamente a ajuda de cidadãos estrangeiros, quer sejam classificados em unidades especiais, quer agregados em unidades pré-existentes. E, para ser mais preciso, a Legião Internacional nem sequer é a primeira legião estrangeira a ser estabelecida no contexto da guerra Russo-Ucraniana. Na verdade, a chamada Legião Nacional Georgiana tem lutado na região de Donbass desde 2014. Esta última, fundada e inicialmente composta exclusivamente por cidadãos georgianos, foi integrada pela primeira vez às forças armadas ucranianas em fevereiro de 2016 e posteriormente aberta a voluntários estrangeiros de diversas nacionalidades.

Dado o interesse súbito e generalizado neste tópico, não é surpresa que as publicações sobre a Legião Internacional Ucraniana tenham crescido rapidamente desde o anúncio de Zelensky. Acadêmicos e especialistas buscaram respostas para uma ampla gama de questões, incluindo quantos voluntários estrangeiros realmente atenderam ao chamado do presidente Zelensky, de onde vieram, se tiveram treinamento militar antes de seu alistamento, que equipamento e armas trouxeram e quais sanções legais ou sociais podem incorrer ao voltar para casa. Até à data, a lacuna mais evidente na nossa compreensão do fenômeno diz respeito às motivações que levaram – e continuam a levar – voluntários estrangeiros a se alistarem na Legião Internacional Ucraniana. Em suma, por que lutam e correm o risco de morrer por um país estrangeiro? O que leva pessoas de diferentes países e estilos de vida a abandonar o emprego, a deixar a família para trás e a embarcar numa tarefa tão arriscada? Ao explorarmos estas questões, não esqueçamos que este não é um momento normal para as forças armadas de numerosos países em todo o mundo. Da Alemanha aos EUA e da Rússia ao Japão, os governos enfrentam crises agudas de recrutamento e lutam para encontrar soluções. Neste contexto, a decisão dos estrangeiros de se alistarem na Legião Internacional Ucraniana parece, na melhor das hipóteses, intrigante.

Soldados ucranianos em Bakhmut: exército reforçado por estrangeiros (Foto: WikiCommons)

Este artigo pretende preencher a lacuna acima mencionada, partilhando os resultados de um novo estudo, cuja principal contribuição reside no seu acesso incomparável a fontes primárias. Este estudo se baseia em 26 entrevistas realizadas entre janeiro e abril de 2023, pessoalmente na Ucrânia ou online, com voluntários estrangeiros de 16 países e quatro continentes. Também se beneficia de uma variação significativa dentro do grupo de participantes, da idade ao gênero e da experiência militar pré-recrutamento ao papel pós-recrutamento (combatente, instrutor, paramédico, voluntário não-combatente e assim por diante). O questionário da entrevista era composto por 12 questões no total, sendo as quatro primeiras relativas aos dados pessoais e experiência anterior do entrevistado (idade e gênero, país de origem, experiência militar anterior e unidade militar escolhida no momento do alistamento). A quinta questão pergunta aos entrevistados quais foram os principais motivos que os levaram a se alistar na Legião Internacional Ucraniana ou na Legião Nacional Georgiana. O uso intencional do plural permitiu-lhes elencar mais razões em apoio à sua decisão.

A análise das motivações – e motivos – apresentadas pelos participantes começa com considerações normativas que vão até imperativos éticos. Cerca de dez entrevistados afirmaram que lutar ao lado dos ucranianos era simplesmente a coisa certa a fazer. Para cinco veteranos, é dever do soldado tomar partido e lutar numa guerra de agressão. Quatro outros decidiram pegar em armas para proteger civis que de outra forma seriam indefesos; tal como muitos foram convencidos a se alistar depois de verem vídeos de atrocidades cometidas pelas tropas e paramilitares russos contra a população civil na televisão ou nas redes sociais. Por último, para outros dois entrevistados, é uma questão de princípio, o que significa que a Ucrânia tem todo o direito de se defender da agressão russa e de recuperar território que foi ilegalmente ocupado desde 2014, de todas as maneiras possíveis, inclusive pedindo ajuda a voluntários estrangeiros.

As considerações sobre os valores que caracterizam a guerra Russo-Ucraniana seguem de perto os imperativos éticos e morais. Para oito recrutas, a guerra em curso encarna o choque entre o modelo de democracia ocidental (e de integração europeia pacífica), por um lado, e o neo-imperialismo russo, por outro. Que a Rússia é um inimigo como nenhum outro para muitos entrevistados se torna muito claro a partir dos argumentos históricos e geopolíticos que levantaram durante as entrevistas. Para quatro entrevistados, a Rússia simplesmente não é confiável. Neste ponto, recordam que a Rússia quebrou quase todas as promessas escritas no Memorando de Budapeste de Dezembro de 1994. A lista não exaustiva de violações cometidas por Moscou até à data inclui o flagrante desrespeito à independência e à soberania da Ucrânia dentro das suas fronteiras estabelecidas em 1991, a constante pressão econômica exercida sobre Kiev para influenciar a sua política interna, o uso ilegal da força militar convencional e, por último mas não menos importante, a ameaça repetida do uso de armas nucleares. Se a Rússia parece ser o inimigo “perfeito” para dois legionários georgianos, a Ucrânia é ao mesmo tempo uma amiga e uma aliada leal. Finalmente, há aqueles que se alistaram por motivos familiares ou outros motivos pessoais; três voluntários tinham familiares que viviam na Ucrânia na altura da invasão em grande escala da Rússia, enquanto um quarto se alistou porque nasceu na Ucrânia, embora de pais estrangeiros.

Talvez a explicação mais curiosa e elaborada diga respeito ao contexto geopolítico em que se desenrola a guerra Russo-Ucraniana. Para cinco voluntários, é totalmente errado pensar que o conflito diz respeito apenas a dois países. A este respeito, dois legionários dos EUA acreditam que a Rússia está ativamente à procura de um confronto direto com o seu país. Enquanto isso, um voluntário brasileiro teme que Moscou pretenda expandir sua influência maliciosa na América Latina. Em contrapartida, dois voluntários europeus acreditam que as ambições geopolíticas do Kremlin são melhor descritas como regionais e destinadas a aumentar a influência russa no chamado “estrangeiro próximo”. Independentemente da extensão real das ambições geopolíticas da Rússia, estes cinco entrevistados concordam que, mesmo que a Rússia consiga de alguma forma alcançar uma vitória decisiva na guerra em curso, não se limitará a subjugar a Ucrânia e avançará ainda mais, embora não possam prever em qual direção.

Estes resultados lançam finalmente alguma luz sobre as razões pelas quais os voluntários se alistaram em qualquer uma das legiões estrangeiras integradas nas forças armadas ucranianas. Dito isto, a nossa análise não estaria completa sem algumas observações finais. Em primeiro lugar, é preciso notar que 21 dos 26 participantes (ou 80,77%) eram soldados de carreira ou tinham adquirido experiência militar considerável antes de se mudarem para a Ucrânia e se juntarem à luta contra a Rússia. A decisão de se alistar poderá, portanto, depender, no todo ou em parte, das suas escolhas pessoais e profissionais anteriores (a chamada dependência de trajetória). Em segundo lugar, embora seja justo questionar se – e em que medida – o conjunto de participantes é representativo do conjunto mais amplo, vale a pena sublinhar que, até à data, o presente estudo é o único que teve acesso tão amplo a um grupo de pessoas que geralmente relutam em conceder entrevistas e muito menos em participar de estudos acadêmicos.

André Hack Bahi, brasileio morto na Ucrânia (Foto: Facebook/reprodução)

Por último, deveríamos perguntar por que demoramos tanto para obter uma visão significativa da tomada de decisões dos voluntários estrangeiros. Na verdade, tanto a propaganda russa como a utilização imprecisa de certos termos contribuíram para distorcer o debate acadêmico e político sobre as motivações dos voluntários estrangeiros. A propaganda de Moscou, para começar, quer que acreditemos que a ideologia da extrema-direita motiva os combatentes estrangeiros, mas não encontramos nenhuma menção ao nazismo nas entrevistas realizadas. Além disso, a utilização acrítica de termos como combatentes estrangeiros ou mercenários gerou confusão adicional e suposições problemáticas. Embora tecnicamente correto, o primeiro tem sido frequentemente utilizado em relação ao terrorismo islâmico no Afeganistão e no Médio Oriente. Ainda assim, nenhum dos 26 entrevistados mencionou a religião, muito menos o extremismo religioso, como um fator que contribuiu para a decisão de se alistar.

Quanto ao termo “mercenário”, surgiu confusão devido ao fato de a maioria dos voluntários estrangeiros receber um salário base pelo seu serviço após serem integrados às forças armadas ucranianas. Na verdade, foi notado em outro local que “os mercenários e os combatentes estrangeiros têm muitas semelhanças.” Para evitar qualquer confusão, alguns voluntários estrangeiros preferem não receber remuneração e se optam por se sustentar durante o destacamento ativo. Ainda assim, existe uma dupla distinção entre voluntários estrangeiros remunerados e mercenários. Em primeiro lugar, os mercenários lutam por ganhos privados, enquanto os voluntários estrangeiros recebem – ou são elegíveis para receber – uma compensação monetária como resultado do seu serviço. Dito de outra forma, o dinheiro é o principal motivador para os mercenários e apenas uma consequência para os voluntários estrangeiros remunerados.

Em segundo lugar, devemos prestar atenção ao quanto estas duas categorias estão sendo pagas. Os voluntários estrangeiros recebem um salário igual ao dos seus homólogos ucranianos, enquanto aos mercenários é normalmente prometida uma “compensação material superior à paga aos combatentes ou às forças armadas de patentes semelhantes.” Apesar destas distinções, não encontramos provas de que o dinheiro tenha informado ou de outra forma contribuído para a decisão dos voluntários estrangeiros de se juntarem à luta contra a Rússia. Na verdade, vários entrevistados tinham carreiras muito mais lucrativas e estáveis ​​antes de se mudarem para a Ucrânia, e outros cobriam as suas próprias despesas no momento em que as entrevistas foram realizadas. Em suma, deveríamos nos abster de fazer uma comparação inadequada entre voluntários estrangeiros que lutam ao lado dos ucranianos e mercenários reais, como membros do Wagner Group ou outras empresas militares privadas do lado russo.

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