Rússia vê conflito em Gaza como fato novo capaz de enfraquecer a Ucrânia

Kremlin usa seus propagandistas para difundir a ideia de que a agressão do Hamas e a resposta israelense tomarão todo o tempo do bloco ocidental

Oficialmente, a Rússia classificou o conflito que explodiu em Gaza após o ataque do Hamas a Israel como “um grande perigo para a região”, segundo a agência turca Anadolu. Nos bastidores, porém, Moscou avalia a situação como um fato novo capaz de, ao mesmo tempo, servir como cortina de fumaça para a guerra que prossegue na Ucrânia e reduzir o apoio ocidental a Kiev.

De acordo com o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, da sigla em inglês), um centro de pesquisas com sede nos Estados Unidos, Moscou aproveitou o conflito iniciado no Oriente Médio para culpar o Ocidente, que teria negligenciado a região para dar atenção exclusivamente à Ucrânia.

Tal análise partiu inclusive do governo russo, caso do ex-presidente Dmitry Medvedev. “Em vez de trabalharem ativamente no estabelecimento de um acordo palestino-israelense, estes idiotas interferiram nos nossos assuntos e fornecem aos ‘neonazis’ ajuda em grande escala, colocando os dois povos intimamente relacionados um contra o outro”, disse ele no X, antigo Twitter.

Já o Ministério das Relações Exteriores da Rússia acusou os Estados Unidos de dificultarem a formação de um grupo que seria capaz de negociar a paz entre israelenses e palestinos, o qual seria formado por Moscou, Washington, a União Europeia (UE) e a ONU (Organização das Nações Unidas).

Nos bastidores, a propaganda do Kremlin já trabalha para difundir a ideia de que o conflito em Gaza trará benefícios. “Muitos blogueiros russos se concentraram principalmente nos ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro, e alguns promoveram operações de informação do Kremlin alegando que a atenção do Ocidente se deslocou da Ucrânia para Israel”, disse o ISW em seu balanço diário no domingo (7).

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, (Foto: ONU/Flickr)

Em artigo publicado pelo think tank norte-americano Center for European Policy Analysis (CEPA), a atriz Julia Davis, idealizadora de um serviço de monitoramento da mídia russa, foi mais longe e disse que há na Rússia quem veja o conflito como “boa notícia”.

Davis citou o caso do propagandista Marat Bulatov, apresentador de um programa no canal online Solovyov Live, que pertence a outro notório analista político pró-Kremlin, Vladimir Solovyov.

Durante o programa Dia Z, do veículo de mídia digital, Bulatov leu uma carta supostamente enviada por uma cidadã russa no sábado (7), dia do ataque do Hamas e também aniversário do presidente da Rússia, Vladimir Putin.

“Não é como no ano passado, quando a ponte da Crimeia foi destruída no aniversário de Putin. Só temos boas notícias hoje”, dizia a mensagem, avalizada pelo apresentador: “Sim, concordo plenamente.”

A Rússia, Israel e o Hamas

Enquanto os porta-vozes extraoficiais do Kremlin usam o conflito em Gaza a favor da Rússia, a diplomacia do país tenta fazer o papel de mediadora. Dmitry Peskov, porta-voz da presidência russa, disse que “é necessário levar esta situação para uma direção pacífica o mais rápido possível”, pois ela cria “um grande perigo para a região, por isso estamos extremamente preocupados.”

Entretanto, episódios recentes geram questionamento quanto ao verdadeiro papel da Rússia no Oriente Médio. Em março deste ano, o Hamas disse ter enviado uma delegação à Rússia, onde os líderes da organização teriam se encontrado com o ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov.

“A liderança do movimento visitou Moscou e conheceu Sergei Lavrov. Foi uma visita importante que destaca o papel do movimento com muitos atores globais”, disse Saleh al-Arouri, vice-chefe do gabinete político do Hamas, segundo o site Al-Monitor.

Visitas semelhantes ocorreram outras duas vezes, em maio e setembro de 2022, de acordo com o artigo do CEPA, que acrescenta: “O grupo disse que o seu ataque foi apoiado pelo Irã e outros países, mas não os identificou.”

Paralelamente, a relação entre Rússia e Israel vai de mal a pior. Em julho do ano passado, o Ministério da Justiça russo determinou o fechamento da filial local da Sohnut (Agência Judaica para Israel), uma organização sem fins lucrativos que processa a imigração de judeus para Israel.

A ação contra a agência, que tem sede em Jerusalém, evidenciou o incômodo de Moscou com as críticas de Israel à agressão russa à Ucrânia. Entre elas, uma feita pelo ex-premiê Yair Lapid, que em abril de 2022 acusou Moscou de consumar crimes de guerra, condenando o que chamou de “visões terríveis em Bucha”, citando um massacre atribuído às tropas da Rússia contra civis ucranianos.

O próprio Lavrov esteve na mira do governo israelense ao fazer comentários antissemitas em maio. “E se Zelensky for judeu? O fato não nega os elementos nazistas na Ucrânia. Acredito que Hitler também tinha sangue judeu. Isso não significa absolutamente nada… os antissemitas mais ardentes geralmente são judeus”, disse à época o ministro, fala que gerou indignação em Israel.

Na ocasião, autoridades israelenses chamaram os comentários de falsidade “imperdoável”, enraizada em erros históricos e teorias de conspiração delirantes, que degradaram os horrores do Holocausto nazista e transformaram vítimas em perpetradores.

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