Oficialmente, a Rússia classificou o conflito que explodiu em Gaza após o ataque do Hamas a Israel como “um grande perigo para a região”, segundo a agência turca Anadolu. Nos bastidores, porém, Moscou avalia a situação como um fato novo capaz de, ao mesmo tempo, servir como cortina de fumaça para a guerra que prossegue na Ucrânia e reduzir o apoio ocidental a Kiev.
De acordo com o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, da sigla em inglês), um centro de pesquisas com sede nos Estados Unidos, Moscou aproveitou o conflito iniciado no Oriente Médio para culpar o Ocidente, que teria negligenciado a região para dar atenção exclusivamente à Ucrânia.
Tal análise partiu inclusive do governo russo, caso do ex-presidente Dmitry Medvedev. “Em vez de trabalharem ativamente no estabelecimento de um acordo palestino-israelense, estes idiotas interferiram nos nossos assuntos e fornecem aos ‘neonazis’ ajuda em grande escala, colocando os dois povos intimamente relacionados um contra o outro”, disse ele no X, antigo Twitter.
Clashes between Hamas and Israel on the 50th anniversary of the Yom Kippur War come as an expected development. This is what Washington and its allies should be busy with. The conflict between Israel and Palestine has been going on for decades, with the US the key player in it.…
— Dmitry Medvedev (@MedvedevRussiaE) October 7, 2023
Já o Ministério das Relações Exteriores da Rússia acusou os Estados Unidos de dificultarem a formação de um grupo que seria capaz de negociar a paz entre israelenses e palestinos, o qual seria formado por Moscou, Washington, a União Europeia (UE) e a ONU (Organização das Nações Unidas).
Nos bastidores, a propaganda do Kremlin já trabalha para difundir a ideia de que o conflito em Gaza trará benefícios. “Muitos blogueiros russos se concentraram principalmente nos ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro, e alguns promoveram operações de informação do Kremlin alegando que a atenção do Ocidente se deslocou da Ucrânia para Israel”, disse o ISW em seu balanço diário no domingo (7).
Em artigo publicado pelo think tank norte-americano Center for European Policy Analysis (CEPA), a atriz Julia Davis, idealizadora de um serviço de monitoramento da mídia russa, foi mais longe e disse que há na Rússia quem veja o conflito como “boa notícia”.
Davis citou o caso do propagandista Marat Bulatov, apresentador de um programa no canal online Solovyov Live, que pertence a outro notório analista político pró-Kremlin, Vladimir Solovyov.
Durante o programa Dia Z, do veículo de mídia digital, Bulatov leu uma carta supostamente enviada por uma cidadã russa no sábado (7), dia do ataque do Hamas e também aniversário do presidente da Rússia, Vladimir Putin.
“Não é como no ano passado, quando a ponte da Crimeia foi destruída no aniversário de Putin. Só temos boas notícias hoje”, dizia a mensagem, avalizada pelo apresentador: “Sim, concordo plenamente.”
A Rússia, Israel e o Hamas
Enquanto os porta-vozes extraoficiais do Kremlin usam o conflito em Gaza a favor da Rússia, a diplomacia do país tenta fazer o papel de mediadora. Dmitry Peskov, porta-voz da presidência russa, disse que “é necessário levar esta situação para uma direção pacífica o mais rápido possível”, pois ela cria “um grande perigo para a região, por isso estamos extremamente preocupados.”
Entretanto, episódios recentes geram questionamento quanto ao verdadeiro papel da Rússia no Oriente Médio. Em março deste ano, o Hamas disse ter enviado uma delegação à Rússia, onde os líderes da organização teriam se encontrado com o ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov.
“A liderança do movimento visitou Moscou e conheceu Sergei Lavrov. Foi uma visita importante que destaca o papel do movimento com muitos atores globais”, disse Saleh al-Arouri, vice-chefe do gabinete político do Hamas, segundo o site Al-Monitor.
Visitas semelhantes ocorreram outras duas vezes, em maio e setembro de 2022, de acordo com o artigo do CEPA, que acrescenta: “O grupo disse que o seu ataque foi apoiado pelo Irã e outros países, mas não os identificou.”
Paralelamente, a relação entre Rússia e Israel vai de mal a pior. Em julho do ano passado, o Ministério da Justiça russo determinou o fechamento da filial local da Sohnut (Agência Judaica para Israel), uma organização sem fins lucrativos que processa a imigração de judeus para Israel.
A ação contra a agência, que tem sede em Jerusalém, evidenciou o incômodo de Moscou com as críticas de Israel à agressão russa à Ucrânia. Entre elas, uma feita pelo ex-premiê Yair Lapid, que em abril de 2022 acusou Moscou de consumar crimes de guerra, condenando o que chamou de “visões terríveis em Bucha”, citando um massacre atribuído às tropas da Rússia contra civis ucranianos.
O próprio Lavrov esteve na mira do governo israelense ao fazer comentários antissemitas em maio. “E se Zelensky for judeu? O fato não nega os elementos nazistas na Ucrânia. Acredito que Hitler também tinha sangue judeu. Isso não significa absolutamente nada… os antissemitas mais ardentes geralmente são judeus”, disse à época o ministro, fala que gerou indignação em Israel.
Na ocasião, autoridades israelenses chamaram os comentários de falsidade “imperdoável”, enraizada em erros históricos e teorias de conspiração delirantes, que degradaram os horrores do Holocausto nazista e transformaram vítimas em perpetradores.