Sem munição, água, comida e socorro médico: a rotina nos pelotões russos na guerra da Ucrânia

Criminosos, insubordinados e bêbados são considerados dispensáveis e têm chances reduzidas de voltar para casa com vida

Os relatos que surgem desde o início da guerra da Ucrânia, feitos sobretudo por combatentes e seus familiares, evidenciam que nas forças armadas da Rússia há os combatentes considerados de primeira classe e os de segunda. Estes últimos assumem invariavelmente as missões com menor chance de sobrevivência, atuam quase sempre na linha de frente e sofrem com a falta de munição, comida, água e socorro médico. A agência Reuters revelou nesta semana detalhes da rotina de alguns desses soldados, que são tidos como dispensáveis pelo exército russo e têm chances reduzidas de voltar para casa vivos.

Extraoficialmente, os pelotões de segunda classe ganharam o apelido de Tempestade-Z. A letra Z foi adotada por Moscou como símbolo da guerra, enquanto a palavra “tempestade” remete às tropas de assalto das forças armadas, que geralmente lideram os ataques e se expõem a um risco maior.

Soldados do exército da Rússia em treinamento (Foto: reprodução/Facebook)

Os pelotões são geralmente formados por criminosos que optaram por servir às forças armadas em troca de perdão por seus crimes, militares regulares que cometeram atos de indisciplina ou insubordinação ou que foram flagrados bêbados por seus superiores, sendo então punidos.

Treze pessoas que conhecem bem o ambiente nesses destacamentos, entre elas cinco soldados e quatro parentes de membros da Tempestade-Z, conversaram com a reportagem e pediram anonimato, vez que poderiam entrar na mira da Justiça russa pelas informações fornecidas caso fossem identificados.

Segundo uma das fontes dentro das forças armadas, a ordem é para que mesmo o atendimento médico seja negado caso um combatente desses pelotões seja ferido. Ele conta que na região de Bakhmut, palco de alguns dos confrontos mais violentos da guerra, teve que desobedecer seu superior para atender seis ou sete colegas feridos.

“Se os comandantes apanharem alguém com cheiro de álcool no hálito, então eles imediatamente o enviam para os pelotões Tempestade”, contou o soldado. “Os combatentes da Tempestade são apenas carne”, completou.

As forças armadas russas não escondem a existência da Tempestade-Z, embora não aborde o tratamento dispensado a seus membros. Oficialmente, a avaliação é a de que muitos desses combatentes participam de batalhas sangrentas e acabam premiados com medalhas de bravura.

Os principais integrantes desses pelotões menosprezados pelo exército são os criminosos que aderiram ao programa do governo de perdão em troca de serviço militar. Um desses homens conta que em seu destacamento de 120 pessoas apenas 15 sobreviveram a uma batalha contra as forças ucranianas em Bakhmut, em junho.

No caso de Artyom Shchikin, que foi à guerra para ter uma sentença de prisão por roubo perdoada, nem o pagamento acordado com o governo foi respeitado. Familiares contam que a promessa era de 200 mil rublos russos (R$ 10,3 mil) por mês, mas ele costumava receber somente a metade. A última notícia que tiveram veio em junho. Desde então, o ministério da Defesa fornece apenas informações vagas ou simplesmente não retorna os contatos da família perguntando por Artyom.

Os casos de soldados indisciplinados ou insubordinados que acabam enviados aos pelotões Tempestade-Z como punição desrespeitam a lei russa não somente pelo tratamento desumano. A situação também é irregular porque um penalidade como essa somente poderia ser aplicada após julgamento por uma corte militar. Segundo as fontes, nenhum dos episódios de que tiveram conhecimento passou pelo tribunal.

Um grupo de combatentes que teria sido submetido a tal tratamento pelas forças armadas resolveu se rebelar, gravando um vídeo de protesto no qual relatam os supostos abusos. As imagens foram publicadas em junho pelo site o Gulagu.net, que documenta a violência estatal na Rússia.

“Na linha de frente, onde estivemos, não recebemos entregas de munições. Não recebemos água nem comida. Os feridos não foram levados, e ainda hoje os mortos estão apodrecendo”, disse um combatente na gravação. “Recebemos ordens terríveis que nem vale a pena cumprir. Nós nos recusamos a continuar realizando missões de combate.”

Familiares de dois dos soldados foram contatados pela reportagem e confirmaram a denúncia feita no vídeo. Segundo eles, os homens acabaram espancados por autoridades russas como punição, mas o tratamento ao pelotão teria melhorado depois de o vídeo viralizar. Eles, porém, dizem que agora não sabem mais quando serão autorizados a deixar as forças armadas.

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