Sem falar em genocídio, aguardado relatório da ONU sugere ‘crimes contra a humanidade’ em Xinjiang

Michelle Bachelet autorizou a publicação minutos antes do fim do mandato. Documento cita "graves violações dos direitos humanos" pela China

“Graves violações dos direitos humanos têm sido cometidas em Xinjiang“. Sem usar a palavra “genocídio”, é isso que, em síntese, afirma o há muito aguardado relatório a respeito dos abusos cometidos pela China na região, entregue pela alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) Michelle Bachelet nesta quarta-feira (31), em seus últimos minutos no cargo.

A província de Xinjiang, no noroeste da China, faz fronteira com países da Ásia Central, com quem divide raízes étnicas e linguísticas. Ali vive a comunidade uigur, uma minoria muçulmana de raízes turcas que sofre perseguição do governo chinês, com acusações de abusos cometidos por Beijing.

O relatório de Bachelet é fruto também de uma visita histórica que ela fez à região autônoma em maio. Sua missão era investigar as alegações de abusos feitas ao longo dos últimos anos por grupos de direitos humanos como a ONG Human Rights Watch (HRW) e o governo dos EUA, que acusam Beijing de tortura, esterilização forçada, violência sexual e separação forçada de crianças.

Michele Bachelet, alta comissão da ONU para direitos humanos, na China (Foto: divulgação)

O documento assinado por ela indica estratégias do governo chinês na região que “transcenderam fronteiras” e separaram famílias e atesta a opressão ao afirmar que os relatos de “padrões de tortura ou maus-tratos, incluindo tratamento médico forçado e condições adversas de detenção, são confiáveis, assim como as alegações de incidentes individuais de violência sexual e de gênero”.

A alegação de genocídio, uma das principais munições usadas pelos críticos de Beijing e citada pela primeira vez pelo presidente dos EUA, Joe Biden, não foi abordada pelo escritório da ONU.

Por outro lado, a alta comissária levantou preocupações sob a ótica do direito internacional ao analisar as políticas governamentais de “contraterrorismo” e “contraextremismo” na região no período de 2017 a 2019, que podem configurar crime.

“A extensão da detenção arbitrária e discriminatória de membros uigures e de outros grupos predominantemente muçulmanos, de acordo com a lei e a política, no contexto de restrições e privação mais geral dos direitos fundamentais desfrutados individual e coletivamente, pode constituir crimes internacionais, em particular crimes contra a humanidade”, disse Bachelet no relatório de 48 páginas.

A ex-presidente do Chile também relatou que tratamento dado às pessoas mantidas nos “Centros de Educação e Treinamento Vocacional” (VETC, na sigla em inglês), os populares campos de desradicalização, causa igual preocupação. Porém, o documento da ONU não esmiuçou quantas pessoas foram impactadas pelo regime vigente nesses locais, apenas sublinhou que o sistema operava em “grande escala” em toda a província.

Em maio, após retornar da viagem, a comissária da ONU disse que visita não era “uma investigação”, admitiu que não foi a centros de reeducação e fez elogios a políticas de Beijing. À época, a declaração amena levantou desconfianças.

Agora, com o documento entregue, ela sustenta que as informações atualmente disponíveis não permitem que o escritório que dirigiu nos últimos anos tire “conclusões firmes” sobre a extensão exata desses abusos, mas deixa claro que as instalações “fornecem terreno fértil para que tais violações ocorram em larga escala”.

Liberdade e famílias reunidas
Fazendeiros uigures da região de Xinjiang, na China (Foto: WikiCommons)

Ao fim do relatório, Bachelet exorta a China para que “os indivíduos que são arbitrariamente privados de sua liberdade sejam imediatamente liberados”. Ao avaliar que “as condições permanecem em vigor para que violações graves continuem e recorrentes”, elas igualmente “devem ser tratadas de forma rápida e eficaz”.

Ela também instou Beijing a informar as famílias sobre o paradeiro de qualquer indivíduo que tenha sido detido, fornecendo localizações exatas e ajudar a estabelecer “canais seguros de comunicação” e permitir que as famílias se reúnam.

A agora ex-alta comissária finalizou dizendo que situação em Xinjiang requer “atenção urgente” do governo chinês, da ONU, organismos intergovernamentais e sistema de direitos humanos, bem como da comunidade internacional.

“Vida feliz”

Junto do seu relatório, a ONU publicou a versão chinesa dos fatos: uma réplica de 122 páginas, intitulada “Luta contra o terrorismo e o extremismo em Xinjiang: verdade e fatos”. Ainda na quinta (31), autoridades em Beijing definiram as acusações como um apanhado de fake news do Ocidente.

“A avaliação é uma colcha de retalhos de informações falsas que servem como ferramentas políticas para os EUA e outros países ocidentais usarem estrategicamente Xinjiang para obstruir o desenvolvimento da China”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Wang Wenbin, conforme repercutiu a agência Associated Press. “Isso mostra novamente que o Escritório de Direitos Humanos da ONU foi reduzido a um executor e cúmplice dos EUA e de outros países ocidentais”.

Vista aérea de Urumqi, capital da província de Xinjiang, em julho de 2017 (Foto: WikiCommons/ Anagoria)

Já documento de autoria da missão chinesa em Genebra, que serve como contraponto ao das Nações Unidas, fala que o governo chinês se pauta em “igualdade”, bem como segue uma abordagem centrada no povo, “onde viver uma vida feliz é o principal direito humano”.

“A China implementa uma política étnica que apresenta igualdade, unidade, autonomia étnica regional e prosperidade comum para todos os grupos étnicos. Todos os grupos étnicos, incluindo os uigures, são membros iguais da nação chinesa”, diz a réplica.

Sobre as estratégias de segurança, o relatório diz que “Xinjiang tem tomado medidas para combater o terrorismo e o extremismo de acordo com a lei, restringindo efetivamente as frequentes ocorrências de atividades terroristas”.

Tais políticas, segundo o documento, fazem parte de uma atmosfera de “estabilidade social, desenvolvimento econômico, prosperidade cultural e harmonia religiosa“.

“Pessoas de todos os grupos étnicos em Xinjiang levam uma vida feliz, em paz e satisfatória. É a mais alta proteção dos direitos e a melhor prática dos direitos humanos”.

Em maio, Beijing enviou carta a diplomatas em busca de apoio para impedir a publicação do relatório então prometido pela ONU.

Por que isso importa?

Os uigures, cerca de 11 milhões, enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% dos chineses. Denúncias dão conta de que Beijing usa de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa em Xinjiang.

Estimativas apontam que um em cada 20 uigures ou cidadãos de minoria étnica já passou por campos de detenção de forma arbitrária desde 2014.

O governo de Joe Biden, nos EUA, foi o primeiro a usar o termo “genocídio” para descrever as ações da China em relação aos uigures. Em seguida, Reino Unido e Canadá também passaram a usar a designação, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.

A China nega as acusações de que comete abusos em Xinjiang e diz que as ações do governo na região têm como finalidade a educação contraterrorismo, a fim de conter movimentos separatistas e combater grupos extremistas religiosos que eventualmente venham a planejar ataques terroristas no país. Beijing costuma classificar as denúncias como “a mentira do século”.

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