Taleban reintroduz no Afeganistão a interpretação da lei islâmica do ‘olho por olho’

Justiça retaliatória, baseada em mortes e castigos corporais, foi restaurada pelo grupo radical que governa o país desde 2021

Com a recente execução pública de três assassinos condenados em incidentes separados, o Taleban enviou uma mensagem clara de que sua Justiça retaliatória do “olho por olho”, sua mais cruel interpretação da lei Islâmica, foi restaurada no Afeganistão, segundo reportagem da rede Radio Free Europe.

Essa abordagem, conhecida como “Qisas“, foi uma característica da passagem anterior dos talibãs pelo poder no país, que durou de 1996 a 2001, envolvendo punições islâmicas baseadas em vingança, inclusive assassinatos pelas famílias das vítimas.

À época, o destino de assassinos condenados geralmente era morrer com um tiro na cabeça, disparado pela família da vítima. Havia a opção de aceitar “dinheiro de sangue” para salvar o sentenciado da morte. As amputações de mão recaíam sobre ladrões. Já aqueles que cometiam assaltos em estradas tinham uma mão e um pé amputados.

Em 2015, insurgentes talibãs se posicionam diante de três homens acusados de assassinar um casal durante um assalto (Foto: CreativeCommons)

Após quase duas décadas de interrupção sob o novo governo, a organização jihadista linha-dura havia prometido reviver essas práticas desde sua retomada do poder em 2021, como parte de seus esforços para impor sua interpretação rigorosa da chamada lei Sharia. Tal conjunto de regras religiosas prevê punições físicas bárbaras, como açoitamento, amputações, apedrejamento até a morte e outras formas de execução pública.

As execuções públicas dos três homens nas últimas duas semanas indicam que os insurgentes estão levando ao pé da letra suas promessas, dando mostras da determinação em aplicar suas regras de forma rigorosa. Eles foram mortos pelas mãos de familiares de suas vítimas diante de uma plateia.

No dia 22 de fevereiro, Syed Jamaluddin e Gul Khan foram baleados em um estádio de futebol na província de Ghazni, sudeste do país. Uma testemunha relatou à reportagem que um dos homens recebeu oito tiros, enquanto o outro foi atingido por seis balas.

Dias depois, em 26 de fevereiro, Nazar Mohammad foi baleado por um homem não identificado em um estádio na província de Jawzjan, norte do país. O atirador estava buscando vingar a morte de seu irmão, Khal Mohammad, ocorrida dois anos antes.

Justiçamento

Essas formas de justiça “olho por olho”, incluem outros tipos de punições islâmicas, como o “hudood”. Hudood é um termo islâmico que se refere a castigos corporais prescritos pelo Corão para crimes específicos, como adultério, apostasia (renúncia ou abandono de religião), roubo, consumo de álcool e difamação. Essas punições incluem amputação de membros, chicotadas e apedrejamento.

Esses casos não foram os primeiros desde a retomada do poder central pelos talibãs. Desde agosto de 2021, cinco pessoas foram executadas publicamente na sequência de decisões do sistema judicial de fato que foram aprovadas pelo líder talibã.

Em dezembro de 2022, apenas um mês após a ordem do líder do Taleban, Mullah Haibatullah Akhundzada, para o retorno dessas punições, um assassino condenado foi morto a tiros pelo pai da vítima na província ocidental de Farah, diante de uma multidão.

Em junho do ano passado, um homem condenado por assassinar cinco pessoas foi executado na província de Laghman, leste do país, segundo o Talibã, que não forneceu detalhes sobre a forma como a sentença foi cumprida.

Desde a ordem de Akhundzada, o Taleban também aplicou castigos como chicotadas, apedrejamentos e amputações em centenas de pessoas, por crimes como roubo e adultério.

Essas ações têm gerado condenações tanto dentro quanto fora do Afeganistão, com especialistas questionando sua validade à luz da lei islâmica e argumentando que visam principalmente levar o medo à população.

Estudiosos islâmicos afegãos explicam que a aplicação da lei islâmica Sharia deve ocorrer dentro de um governo legítimo, que seja responsável e justo perante o povo.

Ouvido pela reportagem, o professor Fazluminullah Mumtaz, especialista em jurisprudência islâmica, destacou que os juízes responsáveis por tais punições devem ser reconhecidos por sua imparcialidade e conhecimento profundo. Ele enfatizou a necessidade de que esses juízes tenham uma compreensão abrangente dos aspectos jurisprudenciais e da Sharia relacionados à sentença e à sua execução.

Sob o regime talibã, essa condição não se aplica, já que o grupo extremista desmantelou o sistema judicial afegão e seu governo não é reconhecido por nenhum país. A população em geral ainda sente a mão pesada dos jihadistas em execuções extrajudiciais, tortura, maus-tratos, prisões, detenções arbitrárias e ruptura de liberdades fundamentais. 

“Nossas leis”

Após agosto de 2021, com o colapso do governo afegão legítimo, o Taleban, que prometeu moderação, se mostrou mais interessado e engajado em enterrar qualquer resquício de progresso democrático. “Ninguém vai nos dizer quais devem ser nossas leis”, disse em entrevista em março de 2022 o mulá Nooruddin Turabi, um dos fundadores do grupo. “Seguiremos o Islã e faremos nossas leis no Alcorão.”

Alguns exemplos do que Turabi estava falando: sob a lei islâmica tradicional, a homossexualidade e o abandono do Islã, ou seja, a apostasia, recebem a pena de morte. O adultério é punido com açoitamento ou apedrejamento até a morte. O roubo é punível com a amputação de uma mão e um pé. Beber álcool e falsa acusação são puníveis com 40 ou 80 chicotadas.

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