Por André Amaral
Nesta segunda-feira (15) completa-se um ano da tomada de poder pelo movimento fundamentalista Taleban no Afeganistão. A Referência relembra os fatos que antecederam o episódio, da insurgência jihadista até a atualidade, uma transição que jogou o povo afegão na pobreza e o levou a uma batalha contra a insegurança alimentar, o terror e a repressão decorrentes de uma abordagem radical da lei islâmica, a ‘Sharia’. Uma nova velha realidade que tem sido particularmente cruel para as mulheres.
A nova ordem começou a ganhar forma no começo de julho de 2021, com o esvaziamento da base militar de Bagram, que durante vinte anos foi o centro do poder militar dos EUA e de seus aliados no Oriente Médio. O adeus simbolizava um passo importante após um acordo de paz mediado por Washington e assinado em 29 de fevereiro de 2020 pelas autoridades afegãs e o Taleban.
A debandada recebeu críticas no mundo por ser considerada precipitada. O colapso do governo afegão não demorou a acontecer, deixando o poder nas mãos de um Taleban que prometeu moderação, mas se mostrou mais interessado e engajado em enterrar qualquer resquício de progresso democrático. “Ninguém vai nos dizer quais devem ser nossas leis”, disse em entrevista em março o mulá Nooruddin Turabi, um dos fundadores do grupo. “Seguiremos o Islã e faremos nossas leis no Alcorão.”
Alguns exemplos do que Turabi estava falando: sob a lei islâmica tradicional, a homossexualidade e o abandono do Islã, ou seja, a apostasia, recebem a pena de morte. O adultério é punido com açoitamento ou apedrejamento até a morte. O roubo é punível com a amputação de uma mão e um pé. Beber álcool e falsa acusação são puníveis com 40 ou 80 chicotadas.
No tratado de pacificação, assinado em Doha, no Catar, as partes concordaram em retirar as forças do Afeganistão caso os extremistas cortassem relações com grupos terroristas internacionais – inclusive a Al-Qaeda. Houve aperto de mãos e até um grito de “Alá é grande” na ocasião.
“Continuem comprometidos com o acordo, sentem-se com o governo afegão, e a comunidade internacional estará pronta para retribuir”, declarou o então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo. “Estamos à beira de uma oportunidade histórica de paz”.
Apesar do pedido e da atmosfera esperançosa, havia o temor de que a promessa de retirada das tropas dos EUA do país, sob a expectativa da pacificação, pudesse desestabilizar ainda mais o país. O receio era de que o Taleban tirasse vantagem da ausência militar ocidental para pressionar ainda mais as forças de Cabul. Na verdade, foi até uma previsão otimista, já que a violência aumentou logo após a assinatura do acordo.
Mesmo assim, a entrega da base aérea ao governo afegão em julho do ano seguinte, que chegou a abrigar mais de cem mil soldados no auge de suas atividades, teve até cerimônia. Logo após o esvaziamento, saques foram registrados no local, incluindo furtos de computadores e equipamentos militares que ficaram para trás, como veículos blindados capazes de dar ao Taleban uma vantagem militar nas lutas internas no país.
Em agosto, o Afeganistão já estava afundado em violência devido à incapacidade de as forças afegãs conterem o avanço dos radicais. No dia 15, veio a confirmação da crônica de uma tragédia anunciada: os talibãs tomaram Cabul e assumiram de fato o governo central. Milhares de pessoas tentaram fugir do país, mas o caos e a violência no aeroporto impediram a evacuação de muitos afegãos.
Da instabilidade ao colapso
Um ano depois de o último soldado do Ocidente ter apagado a luz e fechado a porta, o êxito talibã levou o Afeganistão de uma crise humanitária para a catástrofe. Um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) divulgado no mês passado revelou que cerca de 700 pessoas foram mortas e mais de 1,4 mil ficaram feridas desde o fatídico agosto de 2021.
O pior cenário é o de mulheres e meninas, que se tornou precário no período em análise. O governo talibã tem na repressão de gênero uma de suas mais autoritárias marcas. Elas não podem estudar, trabalhar e nem sair de casa desacompanhada de um homem. Aliás, a perda do salário por parte de muitas mulheres que sustentavam suas casas tem contribuído para o empobrecimento da população afegã. Há também inúmeros casos de solteiras ou viúvas que foram forçadas a se casar com combatentes.
A população em geral ainda sente a mão pesada dos jihadistas em execuções extrajudiciais, tortura, maus-tratos, prisões, detenções arbitrárias e ruptura de liberdades fundamentais.
A censura talibã atingiu até mesmo a arte. “A música é proibida, de acordo com o Islã”, justificou o porta-voz da organização Zabihullah Mujahid, que a enxerga como “pecaminosa”. Devido à intolerância dos talibãs ao gênero artístico, integrantes do Instituto Nacional de Música do Afeganistão (Anim) e da Orquestra de Mulheres Afegãs Zohra tiveram de deixar o país.
O jornalismo afegão também foi sufocado pelo Taleban. Segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e a Associação de Jornalistas Independentes do Afeganistão (AIJA), 231 veículos de imprensa foram fechados e mais de 6,4 mil jornalistas perderam o emprego no país.
Guerra contra o terror
O professor de relações internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser, autor do livro ‘A luta contra o terrorismo: os EUA e os amigos talibãs’, explicou em conversa com A Referência a conjuntura da mais longa ocupação da história do Estados Unidos, que remonta aos ataques do 11 de Setembro.
“Veio num contexto da chamada ‘guerra contra o terror’. O argumento de Washington era o de que os terroristas usavam territórios onde o Estado é frágil, falido ou sem governo para atacar as grandes potências. Neste caso, os Estados Unidos”, explica Nasser.
Ele lembrou que o responsável por promover tal provocação geopolítica em território afegão foi a Al-Qaeda, não o Taleban.
“A acusação era a de que os talibãs davam guarida para os terroristas. Então, a ideia dos EUA foi a de reestruturar todo o Oriente Médio, a começar pelo Afeganistão. E, nesse sentido, com a derrota do terrorismo, o objetivo era reconstruir o Estado, estabelecendo governos democráticos. Como se viu, isso não foi alcançado”, afirma Nasser.
O professor se referiu a um episódio histórico para exemplificar o comportamento norte-americano em conflitos. Embora o Afeganistão houvesse se tornado um inimigo por conta das ações da Al-Qaeda, o futuro poderia ser diferente, como ocorreu décadas antes após a derrocada do nazismo, que trouxe alianças improváveis, considerando o xadrez geopolítico da época.
“Os Estados Unidos têm uma ideia compartilhada tanto por democratas quanto republicanos que é o parâmetro do que aconteceu na Alemanha e no Japão no pós-Segunda Guerra. Eles costumam dizer que ‘os nossos dois maiores inimigos se tornaram dois grandes aliados’. Então é essa a ideia por trás da questão da reconstrução do Afeganistão: uma aliança”, disse.
O fracasso da retirada de tropas teve um custo alto. De 2 a 3 trilhões de dólares gastos e 2,5 mil vidas perdidas, segundo Nasser. Mas, para o professor, isso não sinaliza um enfraquecimento da política externa de Washington. Até porque, segundo ele, os objetivos alegados podem ser questionáveis.
“Um processo como esse nunca tem um único objetivo. Então, se olharmos, os EUA tentaram reconstruir o Afeganistão, não conseguiram, fracassaram. Ok, mas será que esse era o objetivo mesmo? Qual o motivo dessa histeria com o Afeganistão democrático? Nenhum. Então, muito se questiona sobre isso”, observa Nasser.
Para ele, um dos principais pontos controversos por trás da retórica de luta contra o terrorismo é que a ocupação norte-americana no país fez com que, além dos chamados “senhores da guerra”, muitas pessoas ganhassem dinheiro em cima dela. Particularmente a elite afegã.
“Os EUA jogaram dinheiro para a elite local, compraram milícias e fortaleceram uma série de entidades locais. Muita gente enriqueceu em Cabul. Tanto é que, na véspera da queda do governo, boa parte dessa elite fugiu para as monarquias do Golfo, onde tinha o seu dinheiro guardado”, lembra.
Diante desse quadro, é preciso diferenciar o que é objetivo declarado, a retórica, do que efetivamente estava por trás dos interesses de Washington, acrescenta Nasser. No fim, afora as críticas globais, não foi algo que estremeceu o país. “Não arranhou o poder militar americano, foram poucas mortes e o dinheiro aqueceu a economia de guerra dos EUA”.
Aliados do Taleban
O professor observa que o Taleban fez muitos contatos internacionais mesmo sem governar. Sobretudo com China, Rússia – o Kremlin convidou uma comitiva talibã para visitar o país ano passado –, Paquistão e Irã. E, devido a questões estratégicas de expansão econômica e até étnicas, Cabul é ao mesmo tempo importante e problemática para Beijing.
O assunto espinhoso na relação entre as nações envolve um povo que estaria sendo alvo de genocídio pelos chineses, conforme apontam relatórios da comunidade internacional. No começo de setembro de 2021, pouco depois de assumir o governo afegão, o Taleban manifestou apoio à causa uigur, povo que enfrenta discriminação da sociedade e do governo chinês. Um posicionamento que inclusive poderia balançar a diplomacia entre Cabul e Beijing, que travam um conflito que dura anos pelo controle da região oeste de Xinjiang.
“O Taleban durante muito tempo teve um contato muito próximo com uigures. E muitos grupos de uigures moram no Afeganistão. Sabe-se, então, que os chineses são essenciais nessa relação com o grupo étnico. E a China precisa do Afeganistão porque é um país geopoliticamente estratégico, no centro da Ásia, na Nova Rota da Seda“, disse Nasser.
O Afeganistão também precisa da China. Isso ficou claro quando o porta-voz talibã Zabihullah Mujahid disse que seu governo dependeria principalmente de financiamento chinês, e que o Taleban participaria do “renascimento do antigo projeto da Rota da Seda” por meio de uma parceria com os chineses.
Porém, o reconhecimento dos talibãs como governantes legítimos não veio de Beijing. “Dentro do governo talibã há um Taleban moderado e há o Taleban radical. Uma disputa interna. Então, ainda resta muita dúvida e indefinição”, diz Nasser, apontando que o radicalismo representa uma desconfiança para os chineses.
A aceitação dos talibãs na ONU é tida como um passo fundamental em busca do reconhecimento da comunidade internacional. Porém, há uma grande relutância da legitimidade da organização islâmica no organismo intergovernamental.
“Não há nenhum grupo, com a mínima possibilidade, de se contrapor ao Taleban. Por enquanto, não há nada que chegue perto de uma disputa com eles. Então, esse é uma fato a ser encarado: o Taleban é uma realidade e é preciso avaliar se isolá-lo é o melhor método. Porque foi isso que aconteceu entre 1996 e 2001, quando ocorreu um isolamento da comunidade internacional e o Taleban se radicalizou”, observa o professor, referindo-se à última vez em que os fundamentalistas estiveram no comando do país.
Dias sombrios
A imagem que correu o mundo de um bebê entregue a um soldado norte-americano em meio ao caos no aeroporto de Cabul, durante a retirada das tropas dos EUA e dos aliados em agosto de 2021, ilustrou bem o desespero das famílias afegãs para fugir do próprio país.
Esse drama também foi vivido pela jornalista Krishma Radmanish Safi, 24 anos, seu marido Saleh Muhammad Safi, 31, e o pequeno Wakman, 2, filho do casal. Ela teve que fugir do Afeganistão após sofrer ameaças do Taleban por conta do seu trabalho, que trazia à tona questões de direitos básicos das mulheres, maiores vítimas da opressão do grupo extremista.
Por meio da ajuda da fundação Future Brilliance, Krishma, Saleh e Wakman estão no Brasil desde o mês passado. Eles vivem em Osasco (SP), onde tentam recomeçar a vida em meio a dificuldades. Embora segura num país estrangeiro, a jornalista, que conversou com A Referência, tem pedaço importante de si em solo afegão. Seus pais seguem lá, vivendo como que dentro de uma fotografia fiel à situação do país: o pai está desempregado, e a mãe, doente, cuida de seus irmãos menores.
“Quando deixei o Afeganistão, deixei todos os meus pertences, minha casa, meu carro e acima de tudo meus sonhos, meus desejos, minha família e amigos de uma só vez e me salvei para não cair nas garras do Taleban”, contou.
Quem teve que ficar para trás está enfrentando muitos problemas, lamenta Krishma.
“Meu pai foi um soldado no passado. Ele não pode se mover facilmente pela cidade e pelo mercado. Ele tem medo de ser reconhecido pelos talibãs. Além disso, meus familiares estão em uma situação econômica ruim porque perderam o emprego”.
A jornalista está grávida de quatro meses. Explicar aos filhos no futuro o que aconteceu com seu país de origem não será exatamente uma tarefa difícil, já que ela mesma e outras gerações de afegãos passaram por isso.
“Nós crescemos com as histórias de nossas mães desde a primeira vez que o Taleban chegou ao poder, e agora este capítulo se repete. Eu e meu marido vamos contar aos nossos filhos o que passamos para que eles saibam que problemas enfrentamos para salvar suas vidas e o que suportamos para conseguir uma vida decente. Pode ser difícil para mim dizê-lo e para eles ouvi-lo, mas é um fato e não pode ser negado”, descreve.
Por causa do seu trabalho de repórter, Krishma provou das ações violentas dos radicais para assumir o controle da imprensa do país, que apregoa que nenhum conteúdo jornalístico deve “contradizer os valores islâmicos” ou ir “contra os interesses nacionais”.
“Antes da queda do Afeganistão, quando fui aos distritos e aldeias para preparar reportagens sobre a vida de meninas e mulheres, fui ameaçada pelo Taleban várias vezes, principalmente depois que minhas matérias foram publicadas e encorajaram as mulheres, o que enfureceu os talibãs”, contou.
Krishma foi alertada várias vezes para que deixasse seu emprego, o que incluiu ameaças contra a vida. “Eles me enviaram uma carta ameaçadora em que falavam sobre me matar, o que me fez deixar meu emprego e mudar de província. Mas não parei minha atividade e trabalhei secretamente de casa abordando vários assuntos”.
Durante o governo republicano, segundo a jornalista, havia liberdade de imprensa. Tudo mudou. “Agora, a maioria da mídia de áudio e vídeo foi fechada no Afeganistão, e os demais meios de comunicação se tornaram os porta-vozes do Taleban. Não há liberdade de imprensa, e toda a mídia está sob o controle do Taleban. E eles só publicam o que o Taleban quer”, relatou.
Krishma também fez uma reflexão sobre como a segregação de gênero virou uma das principais marcas do governo talibã.
“Infelizmente, desde que o Taleban chegou ao Afeganistão, seu único foco é a mulher. Eles nos privaram de todos os nossos direitos. Uma mulher não tem o direito de trabalhar, não tem o direito de estudar e não tem o direito de viajar sem um mahram [membro da família]”, relata. “Eles impuseram o hijab [véu que faz parte do conjunto de vestimentas recomendado pela doutrina islâmica] obrigatório e criaram milhares de outros problemas que as mulheres enfrentam atualmente, que são realmente irritantes”.
A violência e o feminicídio também estão bastante presentes. “Mulheres foram presas e espancadas, e até mesmo algumas mulheres foram misteriosamente assassinadas em todo o Afeganistão, o que ainda estamos testemunhando”.
Ela também falou sobre alegações de que viúvas e mulheres solteiras estariam sendo forçadas a se casar com os rebeldes.
“Há vários relatos sobre isso. Há muitas notícias diferentes de todo o Afeganistão que eu realmente não sei apontar qual é verdadeira e qual é falsa, porque esperamos qualquer coisa vinda do Taleban. São homens que não têm educação, passaram a juventude em cavernas nas montanhas e tudo o que fazem é obedecer aos seus mestres, já que sofreram lavagem cerebral e não sabem nada sobre a vida humana”, pondera Krishma.
A jornalista compartilhou sua visão sobre o que significaram os últimos 20 anos de ocupação dos EUA em sua terra natal. “[As forças americanas] Deixaram o Afeganistão no mesmo estado em que chegaram, e não conseguiram conter o Taleban e os terroristas. Mas, quando lá estavam, milhares de afegãos trabalhavam com eles, tinham responsabilidades e vidas, e suas vidas estavam indo bem. Muitos projetos estrangeiros foram implementados e as pessoas se beneficiaram com eles”, lembra, acrescentando que as pessoas eram livres, e as mulheres, valorizadas.
Para ela, tais esforços dos EUA foram desperdiçados. “Eles deveriam ter trazido estabilidade e paz ao Afeganistão e depois partiram. Ao deixar o país e entregar o governo ao Taleban, eles destruíram a prosperidade construída por 20 anos”, afirma.
A realidade no Brasil tem sido mais tranquila. O marido de Krishma conseguiu emprego em um restaurante há pouco mais de uma semana, mas ela segue desempregada. “Aqui é difícil encontrar um emprego para uma mulher grávida”, disse.
Enquanto tenta juntar as peças de uma vida que foi como uma quebra-cabeças desfeito nos últimos 365 dias, a jornalista fez menção a um outro conflito em andamento no mundo que, para ela, tem todos os holofotes e deixa no escuro a situação de seu país.
“O mundo deveria ter ficado com o Afeganistão antes da queda e não permitir isso, mas permaneceu em silêncio e não fez nada. Assim como apoiaram a Ucrânia, deveriam ter apoiado o povo afegão, e agora a única maneira de reviver o país é não reconhecer o regime e fazer com que ele saia de lá”.
A pobreza e a situação das crianças são suas maiores preocupações.
“O mundo deveria continuar a ajudar o povo do Afeganistão e não deixar nenhuma criança morrer de fome. Nossa gente está realmente cansada de ouvir todas essas tristes notícias. Gostaria que nosso país se tornasse estável como outras nações e que as pessoas pudessem viver confortavelmente”.
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