Corrupção leva governos e entidades a suspenderem pagamento de ajuda na África

Fornecimento de verba a Somália e Etiópia foi cortado após constatação de que dinheiro e alimentos vinham sendo roubados

Escândalos de corrupção levaram entidades humanitárias, órgãos governamentais e a União Europeia (UE) a suspenderem o pagamento de ajuda aos governos da Somália e da Etiópia, reduzindo assim a verba disponível para alimentar milhões de pessoas em meio a uma crise severa, impulsionada pela mudança climática e a violência.

O caso mais recente envolve a Somália. Na terça-feira (19), a UE anunciou a “suspensão temporária” dos pagamentos destinados a ajuda humanitária, após uma investigação apontar que o dinheiro, que deveria ser usado para alimentar a população, vinha sendo parcialmente roubado. O caso foi revelado em primeira mão pela agência Reuters.

Balazs Ujvari, porta-voz da Comissão Europeia, disse que a ajuda não foi totalmente suspensa, apenas os pagamentos futuros. “A Comissão não solicitou a suspensão das operações humanitárias na Somália. De acordo com o procedimento padrão, as operações em curso receberam um pré-financiamento de 80% e ainda podem ser implementadas através deste financiamento inicial”, disse ele.

Ainda de acordo com o porta-voz, a medida visa a “salvaguardar os fundos da UE”, e o pagamento continuará suspenso “até que sejam fornecidos esclarecimentos e garantias no que diz respeito à resolução das questões identificadas.”

Família deslocada pela seca recebe água obtida em poço instalado pelo Unicef (Foto: Unicef/Ayene)

A UE apurou que os responsáveis pelo roubo do dinheiro são proprietários de terras, autoridades locais, membros das forças de segurança somalis e trabalhadores humanitários.

Dois cidadãos que recebiam ajuda humanitária e testemunharam na investigação dizem que receberam seus cartões com o equivalente a US$ 130 mensais, mas posteriormente tiveram que devolvê-los. Mais tarde, os cartões foram novamente entregues aos somalis, mas tinham apenas metade do valor. Eles pediram que suas identidades fossem preservadas por medo de represálias.

Questionado pela Reuters, Mohamed Ahmed, presidente do campo de deslocados onde surgiram as denúncias, negou as acusações. “Nunca desviamos o que as agências de ajuda trazem para os deslocados internos”, disse ele.

Corrupção na Etiópia

Caso semelhante foi registrado na vizinha Etiópia, denunciado pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Ambos alegaram corrupção e suspenderam em junho o fornecimento de ajuda humanitária na região de Tigré, norte do país.

Segundo as duas agência, o que as levou a adotar tal medida foi a constatação de que alimentos destinados à população vinham sendo desviados para funções diversas. Os responsáveis pelo desvio de ajuda humanitária seriam funcionários dos governos regional e federal etíope e soldados da Eritreia, cujas forças armadas são parceiras de Adis Abeba no conflito contra os rebeldes de Tigré.

A investigação apontou que sete mil toneladas de trigo e 215 mil litros de óleo de cozinha foram desviados, segundo o general Fiseha Kidanu, chefe de paz e segurança da administração regional interina de Tigré. No total, 186 pessoas foram acusadas, mas apenas sete prisões foram efetuadas.

Adis Abeba disse que abriu uma investigação própria para apurar as denúncias, mas condenou a decisão das agências de cortar a ajuda humanitária. Por sua vez, as forças armadas etíopes negaram que seus solados tenham se beneficiado de qualquer carregamento de alimentos roubados.

Crise humanitária

Chifre da África, região onde se localizam tanto a Somália quanto a Etiópia, passa por uma severa crise, desencadeada sobretudo pela mudança climática. As crianças são as que mais sofrem com os efeitos do problema, que gera fome, deslocamento de pessoas, escassez de água e insegurança em larga escala, de acordo com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

Mais de sete milhões de crianças menores de cinco anos continuam desnutridas e precisam de ajuda nutricional urgente, e mais de 1,9 milhão de meninos e meninas correm o risco de morrer de desnutrição grave no Chifre da África.

À medida que a região sai de uma das piores secas em 40 anos, comunidades já vulneráveis ​​ainda perderam gado, colheitas e meios de subsistência inteiros nos últimos três anos de chuvas fracas.

Embora as chuvas tenham retornado neste ano, elas vieram acompanhadas de inundações, pois o solo extremamente sedento não consegue absorver grandes quantidades de água. Isso intensifica o deslocamento e aumenta o risco de doenças, de perda de gado e de danos às colheitas.

Em toda a região, 23 milhões de pessoas enfrentam altos níveis de insegurança alimentar aguda. O número de crianças gravemente desnutridas que procuram tratamento no primeiro trimestre deste ano foi muito maior que o do ano passado e provavelmente permanecerá alto por um bom tempo.

De quebra, os governos precisam lidar com a violência. Na Somália, o maior desafio é a ação de grupos extremistas, sobretudo o Al-Shabaab, ligado à Al-Qaeda. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) estima que 3,8 milhões de pessoas estejam deslocadas, um número recorde.

A Etiópia, por sua vez, precisa lidar com a tensão no norte do país, resquício de um conflito iniciado em novembro de 2020 e ainda mal resolvido. À época, disputas eleitorais levaram Addis Abeba a determinar a tomada das instituições locais, iniciando dois anos de confrontos entre a TPLF (Frente de Libertação do Povo Tigré), partido político com um braço armado, e as forças de segurança nacionais da Etiópia.

Embora um cessar-fogo tenha sido estabelecido em março de 2023, atrocidades cometidas pelos dois lados continuam vindo à tona. Diante desse cenário, as necessidades humanitárias na região persistem, e os abusos ainda forçam cidadãos locais a deixarem suas casas.

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