Operações do Wagner Group na África estão longe de terminar, apesar do revés no Mali

Artigo avalia a atuação dos mercenários no continente e diz que os analistas costumam ignorar os reais objetivos da organização

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site The Moscow Times

Por John Lechner

Em 27 de julho, o grupo armado irredentista CSP, principalmente tuaregue, e os jihadistas ligados à Al-Qaeda do JNIM (Jamaat Nasr al-Islam wal Muslimin) emboscaram um comboio do Wagner Group perto de Tinzaoutene, no norte do Mali, e o CSP alegou ter matado 84 soldados do Wagner e 47 soldados das Forças Armadas do Mali. Se confirmada, e os números parecem bastante precisos, a perda seria a maior do Wagner até o momento na África e pode até rivalizar com as perdas sofridas contra os militares dos EUA na Batalha de Khasham, na Síria.

Seja qual for a contagem final, há pouca dúvida, mesmo internamente, de que o Wagner sofreu uma derrota significativa. Mas analistas ocidentais foram rápidos demais em apontar os eventos em Tinzaouatene como indicativos de que a prática da Rússia de exportar mercenários para a África foi um fracasso. O Ocidente, os governos africanos e a Rússia há muito se retiraram para câmaras de eco separadas, usando métricas separadas para julgar o sucesso de uma intervenção. Como resultado, especialistas e jornalistas ocidentais ficam consistentemente perplexos cada vez que um governo africano escolhe fazer parceria com Moscou.

Em termos gerais, a relação entre o Wagner Group de Evgeny Prigozhin e o Estado russo em qualquer país dependia da importância percebida daquele teatro para a segurança nacional de Moscou. A importância crítica de proteger o “exterior próximo” da Rússia e retornar ao Oriente Médio foi refletida em laços estreitos entre o Wagner e o Ministério da Defesa (MoD) na Ucrânia e na Síria.

Na África Subsaariana, no entanto, a pegada do Ministério da Defesa era consideravelmente mais leve, dando a Prigozhin mais liberdade para perseguir projetos pessoais como ele achasse adequado. Se na Ucrânia o Wagner era uma ferramenta para os interesses russos, na África trabalhou para criar exatamente o que os interesses da Rússia eram. Na República Centro-Africana (RCA), por exemplo, o papel do Wagner cresceu de uma empresa militar privada (PMC) ocidental bastante padrão, treinando as forças de segurança do país no início de 2018, para uma entidade envolvida em operações militares, diplomacia, negócios e cultura apenas quatro anos depois.

Porta da nova sede do Wagner Group tem a logomarca da organização (Foto: reprodução/VK)

Por exemplo, o Wagner desempenhou um papel importante em levar o governo da República Centro-Africana e 14 grupos armados a assinar o Acordo de Cartum de 2019. Quando seis dos signatários formaram uma nova aliança rebelde (CPC) e atacaram a capital Bangui em janeiro de 2021, a missão do Wagner foi reestruturada de instrução para contrainsurgência.

Em 2021 e 2022, as Forças Armadas Centro-Africanas (FACA), apoiadas pelo Wagner, lançaram uma contraofensiva contra o CPC que viu a maioria das principais cidades retornar ao controle do governo. O foco dos analistas ocidentais na brutalidade da contraofensiva, embora justo, fez com que ela parecesse um fracasso. Entre os centro-africanos, no entanto, a derrota de grupos armados e a restauração da integridade territorial foram amplamente, embora certamente não totalmente, populares.

Esse sucesso não passou despercebido para outras capitais africanas. Poucos meses antes, em meio a protestos na capital, Bamako, membros das forças de segurança do Mali derrubaram o presidente e estabeleceram uma transição política, o Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP). O CNSP manteve seus parceiros da Operação Barkhane, uma operação antiterrorismo liderada pela França. Mas, quando tensões internas desencadearam outro golpe, as relações diplomáticas com a França azedaram.

As raízes de uma das principais frustrações de Bamako com a França estão em 2012, quando grupos armados separatistas tuaregues (MNLA) lutando por um Estado independente no norte do Mali, Azawad, lançaram uma rebelião. O MNLA se aliou à Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI) e aos movimentos jihadistas locais para expulsar os militares malineses. Mas, assim que eles tomaram o norte, os jihadistas expulsaram o MNLA das principais cidades. Quando os jihadistas se voltaram para o sul, o governo de transição em Bamako solicitou a intervenção militar francesa.

O que se tornou uma operação antiterrorismo regional liderada pelos franceses, a Operação Barkhane, foi eficaz no assassinato de comandantes jihadistas. Mas os franceses enfureceram Bamako, bem como muitos malineses, quando se uniram ao MNLA contra os jihadistas e bloquearam a entrada dos militares malineses na cidade capturada de Kidal. A guerra também se mudou para o centro do Mali, onde mascarou essencialmente um conflito étnico com violência e massacres em espiral.

Após o segundo golpe em 2020, as tensões com a França atingiram o ápice e, no início de 2021, membros do CNSP começaram discussões com conselheiros militares russos estacionados no país. Esses conselheiros estavam bem cientes das lacunas entre Barkhane e Bamako e trouxeram os representantes de Prigozhin para a mistura. Juntos, os russos lançaram ao presidente interino Assimi Goita uma operação alternativa de contrainsurgência, com Kidal no centro da missão.

O Wagner pousou no final de 2021, levando à saída da França. Analistas ocidentais tiveram dificuldade em entender o que atraiu oficiais malineses para o Wagner, porque todas as reportagens da mídia da RCA pintaram a intervenção russa como um fracasso. Uma narrativa se desenvolveu de que apenas autocracias africanas que estavam dispostas a assinar recursos em troca de guardas pretorianos fariam parceria com o contratante militar privado russo.

O problema com essa narrativa era que havia uma exceção para cada reivindicação. O Wagner tinha feito parceria com um autocrata no Sudão, mas também com governos democraticamente eleitos na RCA, em Moçambique e Madagascar. O Wagner não assinou acordos de recursos em todos os países, e vincular concessões de recursos à provisão de segurança é uma prática bastante comum na África de qualquer maneira, o que pode ser vantajoso para o governo local terceirizar custos de investimento. O Wagner forneceu proteção presidencial em apenas um país, ao presidente centro-africano Faustin-Archange Touadéra.

Quando o Wagner foi enviado ao Mali, os analistas rapidamente se concentraram em abusos de direitos humanos e ganhos jihadistas no centro do país após a saída da Operação Barkhane e de uma missão de manutenção da paz da ONU (Organização das Nações Unidas). Eles ignoraram que o círculo de Goita havia contratado o Wagner para tirar Kidal dos separatistas tuaregues.

Em outubro de 2023 , apenas dois meses após a morte de Prigozhin, as forças malianas apoiadas pelo Wagner lançaram uma operação para tomar o norte do país. Embora as imagens brutais compartilhadas nas redes sociais devessem ter tornado a partida dos tuaregues nada surpreendente, a captura de uma Kidal abandonada surpreendeu até mesmo os participantes da ofensiva. Dito isso, a sociedade tuaregue dificilmente é monolítica e vários clãs ficaram do lado de Bamako.

O Ocidente subestimou a extensão em que a vitória simbólica do Mali em Kidal poderia revigorar a popularidade do regime em Bamako e abrir caminho para futuras intervenções russas no Sahel. No entanto, a rápida vitória em Kidal também levou Bamako e o Wagner a subestimarem os separatistas tuaregues.

A derrota do Wagner em Tinzaouatene provocou críticas ferozes da comunidade de blogueiros militares da Rússia, principalmente porque um de seus cidadãos mais famosos, Nikita Fedyanin, administrador do canal GreyZone Telegram, foi morto na emboscada. As críticas à nova liderança do Wagner já eram generalizadas, e o claro fracasso na fronteira do Mali com a Argélia só colocou mais lenha na fogueira.

Ainda assim, pintar Tinzaouatene como emblemático do fracasso geral do Wagner no Sahel só se mostrará presciente se Moscou decidir fazer as malas. Um dos principais argumentos de venda do Wagner para governos africanos foi sua disposição de colocar seus próprios homens em risco. A França perdeu um total de 59 soldados no Mali ao longo de nove anos. O Wagner perdeu mais do que isso em um dia. Se Moscou decidir investir mais no conflito, como muitos na Rússia estão pedindo, isso surpreenderá muitos no Ocidente ao mostrar aos governos do Sahel que a Rússia ainda vê valor em seu envolvimento, seja qual for o custo.

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