Nova crise diplomática aproxima ainda mais o Brasil da China e pode penalizar o país, diz analista

Governo Lula não assinou declaração conjunta condenando os "crimes contra a humanidade" cometidos pelo regime de Daniel Ortega

Na última sexta-feira (3), o Brasil se recusou a assinar, ao lado de mais de 50 países, uma declaração conjunta que denuncia os abusos cometidos pelo regime do presidente Daniel Ortega na Nicarágua. Baseado em uma visita feita por especialistas em direitos humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) ao país centro-americano, o documento afirma que “violações e abusos foram perpetrados de forma generalizada e sistemática por motivos políticos”, configurando “crimes contra a humanidade“.

Quem primeiro revelou a posição do Brasil foi o jornalista Jamil Chade, em seu blog no portal Uol. Desde então, o governo brasileiro tem agido para tentar amenizar o impacto negativo da decisão, que gerou uma segunda crise diplomática consecutiva após a ancoragem no Rio de Janeiro de dois navios iranianos, criticada por EUA, Israel e entidades humanitárias.

De acordo com o cientista político Horácio Lessa Ramalho, a decisão do governo brasileiro de se isentar no caso do documento contra Ortega, “apesar de absurda, era previsível”. Ele justifica o raciocínio: “A esquerda latino-americana sempre caminhou junta”.

Nem todos os governos de esquerda sul-americanos, porém, pensam como o Brasil. Chile e Colômbia, por exemplo, assinaram o documento.

“O ponto fora da curva é o Chile. Apesar de ter sido sempre considerado de uma esquerda radical, ele (o presidente chileno Gabriel Boric) tem feito um discurso de que a esquerda não pode ignorar a defesa de direitos humanos e da democracia”, destacou Lessa Ramalho.

Presidentes do Brasil, Lula, e da Nicarágua, Daniel Ortega, no Itamaraty julho de 2010 (Foto: Roosewelt Pinheiro/WikiCommons)
Possíveis punições

Para o Brasil, o efeito das mais recentes decisões pode ser maior que a mera repercussão negativa, e o analista não descarta inclusive a possibilidade de que o país venha a ser penalizado. “Talvez pela União Europeia (UE), que tem assumido posições muito fortes de liderança”, afirma Lessa Ramalho, que descarta, no entanto, punição dos EUA em virtude do caso da Nicarágua.

No episódio dos navios iranianos, houve sim um pedido público de sanções econômicas por parte do senador norte-americano Ted Cruz, que classificou o atracamento como “ameaça direta à segurança dos americanos”. O republicano destacou que, como as embarcações estão sancionadas pelos EUA, o mesmo poderá valer para empresas brasileiras e estrangeiras que prestaram serviços aos navios.

Consciente da situação em que se colocou, o governo Lula já age para amenizar o problema. Uma das medidas foi se oferecer para receber um grupo de mais de 300 opositores de Ortega que perderam a nacionalidade e são hoje apátridas. O Brasil também usou a tribuna da ONU para se posicionar contra o regime nesta terça-feira (7), alguns dias depois da divulgação da declaração conjunta.

Tovar Nunes, embaixador brasileiro nas Nações Unidas, apresentou uma declaração unilateral na qual o país manifesta preocupação com as “alegações de graves violações de direitos humanos e com as restrições ao espaço democrático” na Nicarágua, “em particular execuções sumárias, detenções arbitrárias e tortura contra dissidentes políticos”.

Entretanto, uma fonte ouvida pela agência Reuters, que não teve a identidade revelada, afirma que essa manifestação não foi incisiva. “O documento expressa preocupação, mas não atira pedras, justamente para deixar aberta a possibilidade de diálogo”, declarou.

Lessa Ramalho segue pelo mesmo caminho. Segundo ele, o governo Lula tende a adotar um papel de neutralidade em questões espinhosas como a da Nicarágua, optando por se abster de votar. E isso tende a ser padrão daqui em diante. “Não acredito no voto do sim, mas no da neutralidade. Como a China, que às vezes se mantém neutra em certas situações”.

Um caso que ilustra bem a citada posição chinesa é o de Mianmar. Em dezembro de 2022, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica contra os militares birmaneses que assumiram o poder no golpe de Estado de 2021. O documento exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada com 12 votos a favor e nenhum contrário. China e Rússia, membros permanentes do Conselho de Segurança, se abstiveram, embora tenham optado por não exercer vetos. A Índia também se absteve, enquanto o Brasil, na ocasião ainda sob o governo de Jair Bolsonaro, votou a favor da resolução.

Na visão do analista, não é coincidência o fato de Brasília e Beijing adotarem um posicionamento semelhante de neutralidade. Para ele, cada vez mais o Brasil está sendo direcionado para o lado chinês na balança geopolítica global, algo que ficará evidente com a viagem de Lula a Beijing em 27 de março.

“Vai ser uma rasgação de seda por parte do governo brasileiro ao chinês. Certamente o presidente Lula vai ignorar tudo que acontece a respeito de uigures e direitos humanos”, disse Lessa Ramalho.

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