China vem ampliando iniciativas com viés militar na América Latina e no Caribe, aponta relatório

Segundo especialistas, Beijing investe cada vez mais em projetos de dupla utilização, parcerias de segurança pública e venda de armas na região

A China tem investido cada vez mais em iniciativas com viés militar na América Latina e no Caribe, através de projetos de infraestrutura de dupla utilização, parcerias de segurança pública e outras medidas. É o que afirma um relatório divulgado nesta semana pelo think tank Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês), sediado em Washington.

Assinado pelos pesquisadores Ryan C. Berg e Henry Ziemer, o estudo afirma que Beijing tenta expandir sua influência e sua presença militar no antigo “quintal” dos EUA através de projetos de infraestrutura de dupla utilização, aqueles com fins tanto civis quanto militares, da venda de armas, da oferta de assistência à segurança pública e de parcerias para treinamento e intercâmbio militar. Até a ajuda humanitária seria parte da estratégia.

Como exemplo da crescente presença chinesa na região, o relatório cita a denúncia de que Cuba teria autorizado Beijing, mediante pagamento bilionário, a instalar na ilha uma base de onde seria possível interceptar comunicações eletrônicas dos EUA.

Soldados do Exército de Libertação Popular da China durante uma parada militar (Foto: WikiCommons)

“A verdadeira extensão da presença militar da China na ilha continua a ser calorosamente debatida em fontes abertas, mas dada a proximidade de qualquer instalação deste tipo às principais infraestruturas comerciais, tecnológicas e militares ao longo da costa sudeste dos Estados Unidos, deveria inspirar uma preparação para o pior”, diz o texto, cobrando ações preventivas mais fortes de Washington.

Para evidenciar o interesse da China pela América Latina e o Caribe, os especialistas destacam que figuras em postos elevados dentro do Exercito de Libertação Popular (ELP), as forças armadas da China, fizeram mais de 200 visitas a países da região entre 2002 e 2019.

Embora o caso de Cuba seja emblemático, a presença militar chinesa no hemisfério ocidental por vezes se fortalece através de projetos de infraestrutura supostamente civil. Nesse sentido, o documento cita o ex-presidente Deng Xiapoing, que defendia a estratégia de “esconder sua força e esperar a hora certa.”

O esforço chinês, dizem os autores, tem como objetivo “garantir que os recursos e infraestruturas civis possam ser perfeitamente integrados com as capacidades militares quando necessário, o que foi documentado em projetos relacionados com a Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative).”

Um exemplo prático de como isso funciona é o porto de Hambantota, no Sri Lanka, gerido pela China com base em um contrato firmado através da BRI. Embora seja seja uma instalação civil, voltada a navios comerciais, tem especificações que permitem o eventual atracamento de embarcações da marinha do ELP se assim for necessário.

“Foi também revelado que projetos portuários financiados pela RPC (República Popular da China) nos Emirados Árabes Unidos e na Guiné Equatorial albergam instalações e capacidades que poderiam ser utilizadas para fornecer capacidades de reabastecimento e suprimentos no estrangeiro, bem como assistência de comando e controle, à marinha do ELP”, diz o texto.

O Brasil é um país que se enquadra nessa situação através da parceria com o grupo China Merchants Port Holding Company (CMPort) para gerenciamento do porto de Paranaguá, o segundo com maior volume de movimentação de carga no país, atrás somente do porto de Santos.

Nesse caso, a estratégia chinesa é bem mais discreta que a habitual. Não há perspectiva de que ancorem no porto brasileiro navios militares, ou mesmo supostas embarcações de espionagem, como ocorreu com um navio de “pesquisa” que atracou em Hambantota em agosto do ano passado e gerou apreensão na Índia.

Em Paranaguá, o porto fica muito próximo de uma instalação militar brasileira, o que poderia ajudar o governo chinês a coletar, a partir de suas instalações vizinhas, “informações humanas e eletrônicas.” Exatamente como ocorre em Wilhelmshaven, na Alemanha, onde Beijing gerencia um centro logístico “a apenas três milhas (cinco quilômetros) da maior base naval alemã.”

O documento acrescenta que “uma parceria chinesa com um país que alberga um setor de defesa mais robusto, como o Brasil, poderia ser motivo de preocupação ainda maior.” Por ora, porém, essa hipótese parece distante, com a Venezuela sendo um parceiro muito mais provável. Ou mesmo a Argentina, com quem Beijing cogitou um acordo para produção dos jatos militares JF-17.

Mesmo a compra de armas chinesas ainda não está nos registros brasileiros, considerando apenas acordos firmados com EUA, Rússia e China. Em tal cenário, os norte-americanos são o maior fornecedor brasileiro, com 82,78%, contra 17,22% dos russos. Só a Bolívia tem a China como maior parceiro nesse campo, com 66,23%, contra 33,77% dos EUA.

Outra estratégia chinesa para exercer influência, ainda mais discreta, é a assistência humanitária e o apoio em caso de desastres ambientais, como ficou claro em outros continentes.

“A China demonstrou vontade de usar a resposta a desastres como moeda de troca política, como no rescaldo do tufão Haiyan, quando a China atrasou a entrega de ajuda às Filipinas como resultado de disputas territoriais em curso no Mar da China Meridional“, diz o documento.

Neste momento, no entanto, a ameaça é reduzida, vez que os Estados Unidos continuam sendo o parceiro preferido nas nações locais. Embora seja um bom mecanismo para Beijing melhorar sua reputação, entre 2010 e 2022 o país investiu somente US$ 19 milhões em assistência humanitária e apoio em caso de desastres ambientais a nações latino-americanas.

Focado em alertar Washington, o documento conclui que a presença chinesa na América Latina e no Caribe “representa preocupações significativas para os Estados Unidos no caso de um potencial conflito ou crise”, bem como uma ameaça constante de comprometimento da estabilidade regional.

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