“A China do século XXI é capitalista”. A frase do sociólogo norte-americano Eli Friedman, autor do livro “Insurgency Trap: Labor Politics in Postsocialist China (Armadilha da Insurgência: Política Trabalhista na China Pós-Socialista, em tradução livre), ilustra bem o momento de Beijing no aspecto econômico. E, com uma fina ironia, explica politicamente a longevidade do Partido Comunista Chinês (PCC), que nesta quinta-feira (1) comemora seu centenário sustentado por uma economia poderosa e maculado por delicadas questões humanitárias e geopolíticas nos âmbitos doméstico e mundial.
O “socialismo com características chinesas”, implantado por Deng Xiaoping há quatro décadas e mantido por seus sucessores, levou o país ao posto de segunda maior economia do mundo. Deixar para trás parte das ideias de Mao Tse-tung permitiu à sigla sobreviver a eventos como a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, que deram início ao encolhimento do Comunismo no planeta.
A etapa seguinte seria cruzar as fronteiras nacionais, mas a China não parece disposta a ir além de seus domínios. A possibilidade de assumir o posto de maior economia do planeta é palpável, mas o custo geopolítico pode ser alto para um governo autoritário acostumado a gerir politicamente uma nação assustada.
Vigilância e repressão
“No plano doméstico, o Partido Comunista Chinês, preocupado com o fato de que permitir a liberdade política poderia comprometer seu poder, construiu um Estado orwelliano de vigilância altamente tecnológico e um sofisticado sistema de censura na internet para monitorar e abafar o criticismo público”, afirma a organização Human Rights Watch (HRW).
Satisfeitos com o controle que conseguem impor em seus domínios, os chineses talvez não estejam preocupados em dar um passo rumo à supremacia econômica mundial. “Quando olhamos para a hipótese efetiva de a China expandir e se tornar a maior economia global, há também um custo político de governança global”, disse Pedro Brites, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS e professor da FGV-SP, em contato com A Referência.
Paulo Menechelli, secretário geral do Centro de Estudos Globais da UnB e diretor de pesquisa da rede Observa China, segue o mesmo raciocínio. “Mesmo que a China se torne a maior economia do mundo em valores, ela não sinaliza o interesse de impor sua cultura a outros países”.
Com ou sem domínio cultural global, a economia chinesa não dá sinais de desaceleração. “Existe uma aposta no ocidente de que esse crescimento [econômico da China] não vai se sustentar, mas essa aposta é sempre postergada. Me parece difícil reverter este quadro”, afirmou Brites. “É claro que a China já não tem o mesmo crescimento de dois dígitos que tinha há 20 anos. Mas é possível prever, sim, um crescimento sustentável”.
Pujança econômica
Hoje, o PCC é a maior instituição política do mundo, com mais de 90 milhões de afiliados. Uma história que começou de forma trágica, com a fome que matou dezenas de milhões em meio ao Grande Salto Para a Frente de Mao Tse-tung. Passou pelo Massacre na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), o último respiro da liberdade de opinião no país. E atingiu a pujança econômica com Xi Jinping, desde 2013 o padrinho do sistema repressor com que Beijing gere a informação e controla a população sob o escudo de uma economia que caminha a passos largos.
No ranking Global 500 da revista Fortune, a China tem atualmente 124 das 500 empresas mais valiosas do mundo. Ninguém produz e exporta tanto no planeta quanto os chineses. Mesmo em tempos de Covid-19, a economia não perde o ritmo, e a projeção dos economistas é de um crescimento econômico entre 8% e 9% em 2021, ante a uma projeção modesta de 6% do próprio governo.
Mas os números podem enganar. “A própria China se descreve, dependendo do ambiente, como uma economia pujante, ao mesmo tempo em que reconhece seus muitos desafios internos. Mesmo que se torne uma potência, ou a maior, ela sabe que tem desafios”, diz Menechelli. “Só em 2021 ela conseguiu atingir a meta de acabar com a pobreza extrema, apesar dos questionamentos. Isso não é condizente com a maior potência global. E a China sabe disso”.
Poder centralizado
Se economicamente o modelo chinês remete ao capitalismo, politicamente o país segue um modelo comunista rígido. O Partido Comunista Chinês não é o único do país, mas concentra todo o poder. Os demais partidos cuja existência é aceita são subordinados à sigla central. Embora seus membros ocupem inclusive cargos governamentais, não agem em desacordo com o PCC.
“Desde a sua fundação, estes [partidos] estabeleceram relações de cooperação com o PCC em diferentes graus”, diz o site do ministério de assuntos exteriores da China. “Os partidos não comunistas da China não são apenas partidos de fachada, nem partidos de oposição, mas sim partidos amigos que coexistem”.
Na prática, qualquer sinal de oposição é esmagado pelo governo. E Xi Jinping tem colocado isso em prática mais que seus antecessores, os quais permitiam certo grau de flexibilidade. Atualmente, o controle do partido sobre a sociedade chinesa remete aos dias de Mao. Desde 2013, por exemplo, uma lei dá à polícia o poder de deter qualquer indivíduo em um estabelecimento secreto por até seis meses. É a RSDL (vigilância residencial num local designado, da sigla em inglês), um eufemismo burocrático para designar prisão sem condenação judicial.
Segundo a ONG Safeguard Defenders, a RSDL nada mais é que um “sequestro sancionado pelo Estado”. O processo compreende detenção, interrogatório e, em muitos casos, tortura. Há relatos de privação de sono e de comida, agressão, aplicação forçada de medicamentos e abusos sexuais. “Por definição, quando o desaparecimento forçado é realizado em escala ou sistematicamente, é considerado crime contra a humanidade, segundo as normas dos direitos humanos”, diz relatório da entidade.
Oposição esmagada
Mesmo dentro do partido, Xi tem lidado com um número crescente de descontentes. E o faz, claro, com mão de ferro. Em agosto de 2020, uma das vítimas foi a dissidente política Cai Xia, membro do partido e devota do comunismo chinês. Ela foi expulsa do PCC e perdeu o direito à pensão depois que áudios vazaram com críticas a Xi e ao partido. Ela teria se referido ao líder como um “chefe mafioso”, e ao PCC, como um “zumbi político”. Ela vive nos EUA desde 2019.
Mas nenhum episódio ilustra melhor a forma como o partido lida com oposicionistas que o Massacre da Praça da Paz Celestial. Em 4 de junho de 1989, um protesto pacífico que pedia mais abertura no partido e menos corrupção no governo foi repelido com tanques de guerra e metralhadoras. Centenas, talvez milhares de pessoas, na sua maioria estudantes, foram mortas. Não existe uma contagem oficial do numero de vítimas.
Campos de “reeducação”
Atualmente, não é preciso ir às ruas protestar para atrair olhares desconfiados do PCC. É o caso da minoria uigur, da região de Xinjiang. Eles formam uma das 50 etnias do país, e o simples fato de serem muçulmanos os tornou alvo do governo chinês, sob o argumento de combater o extremismo religioso.
“Deveria chocar a consciência da humanidade que um grande número de pessoas tenha sido submetido a lavagem cerebral, tortura e outros tratamentos degradantes em campos de internamento. Outros milhões vivem com medo em meio à alta vigilância”, disse a secretária-geral da Anistia Internacional, Agnès Callamard.
Para governos como os dos EUA e do Reino Unido, a ação do governo chinês contra os uigures configura “genocídio”. Preocupadas, 40 nações se uniram sob a liderança do Canadá e cobram de Beijing o acesso de observadores independentes à região para avaliar as condições humanitárias do que a China chama de campos de “reeducação”. “Estamos seriamente preocupados com a situação em Xinjiang”, resumiu a embaixadora do Canadá na ONU (Organização das Nações Unidas) Leslie Norton.
Tigre asiático
Num caso específico, estar fora da fronteira continental chinesa não basta para escapar das garras do Estado. Com a ascensão de Mao e a Revolução Chinesa de 1949, o governo de Chiang Kai-shek deixou o território chinês e se instalou na Ilha de Formosa, hoje Taiwan. Formou-se ali um governo independente, que com o tempo aliou-se aos EUA, passou por um processo de abertura política nos anos 1990 e tem hoje uma das 25 maiores economias do mundo.
Para a China, o sistema político de Taiwan pode até ser diferente, com eleições democráticas e pluripartidarismo. Mas isso não significa independência. Beijing enxerga Taipé como parte de seu Estado, e uma declaração de emancipação promete ser esmagada com força militar. Ou econômica.
“Uma invasão provavelmente sobrecarregaria as forças armadas chinesas”, diz um relatório recente do Pentágono sobre a situação. Porém, de acordo com o mesmo documento, a China é capaz de bloquear Taiwan com cortes dos tráfegos aéreo e naval e das redes de informação. Além de ataques de mísseis em grande escala e possíveis tomadas das ilhas offshore de Taiwan, como as Ilhas Prata, de Kinmen e Matsu, no Mar do Sul da China
O cerceamento de Taiwan aceleraria o consumo de materiais essenciais e levaria a ilha ao colapso, conforme análise de especialistas. Uma ação perfeitamente condizente com as ideias de um partido que não mede esforços para crescer. Mesmo que o custo seja alto demais para seus próprios cidadãos.