Rotina de estrangeiros em pesqueiros da China tem exaustão, doença e morte

Embarcações chinesas cometem toda sorte de abusos contra pescadores, a ponto de os EUA terem vetado uma das maiores produtora de atum do mundo

Em maio deste ano, a agência de alfândega e proteção de Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês) proibiu a importação de todos os produtos comercializados pela Dalian Ocean Fishing Co. (DOF), empresa de pesca de atum da China e uma das maiores do mundo. A sanção deve-se a uma série de abusos cometidos em barcos pesqueiros da companhia. Uma reportagem publicada na segunda-feira (13) pelo site Mongabay revelou muitos desses abusos, que incluem violência física e psicológica, desrespeito a leis trabalhistas internacionais e até a morte de pescadores.

Um caso de grande repercussão ocorreu em dezembro de 2019, quando foi revelado que quatro indonésios adoeceram e morreram a bordo do barco Long Xing 629, da DOF. Testemunhas alegam que os homens faziam turnos de trabalho exaustivos, eram punidos muitas vezes com violência física e recebiam comida e água de péssima qualidade. Segundos especialistas, a provável causa da morte foi beriberi, uma doença nutricional caracterizada pela falta de vitamina B1 no organismo e que gera, entre outros sintomas, inchaço em partes do corpo.

As condições desumanas de trabalho, porém, não são exclusividade do Long Xing 629. Elas são habituais entre os barcos da DOF, cuja frota é de 35 embarcações, e mesmo de outras empresas de pesca de bandeiras diversas. Além dos maus tratos a bordo, os trabalhadores são proibidos de deixar as embarcações, que geralmente permanecem no mar por dois anos. Para economizar combustível, elas sequer voltam ao continente a fim de descarregar os peixes, quase sempre transferidos a carga a embarcações menores usadas exclusivamente para isso.

Rotina de estrangeiros em pesqueiros da China tem exaustão, doença e morte
Equipe de pescadores Indonésios a bordo do Long Xing 629: quatro deles morreram (Foto: reprodução)

As embarcações costumam ter cerca de 20 trabalhadores estrangeiros, além de sete ou oito oficiais superiores, esses sempre chineses e com condições bem melhores. O trabalho costuma ser ininterrupto, sete dias por semana, com jornadas de no mínimo 18 horas diárias. Quando a quantidade de peixes é muito grandes, é comum a equipe trabalhar por dois dias sem folga, com intervalos de cerca de 5 minutos para comer.

No caso dos indonésios mortos, o salário prometido era de US$ 350 mensais, o dobro do salário mínimo na província da Sumatra Meridional, na Indonésia, de onde partiram alguns dos homens a bordo do Long Xing 629.

Responsabilidade chinesa

A China é de longe a maior potência pesqueira do mundo, com uma atividade que equivale à soma da dos quatro países seguintes do ranking. Vinte e nove dos 35 barcos de pesca listados em queixas à ONG Sindicato dos Trabalhadores Migrantes da Indonésia em um período recente de 13 meses são chineses. E mais de 80% dos 35 indonésios que morreram em embarcações pesqueiras estrangeiras entre novembro de 2019 e março de 2021 trabalharam em barcos chinesas, segundo a ONG Destructive Fishing Watch.

Questionado, o Ministério das Relações Exteriores da China afirmou que as alegações de abusos são “fabricadas”, e que a sanção é “nada além de uma mentira inventada pelos EUA em uma tentativa de suprimir desenfreadamente as empresas chinesas”.

Nos últimos dois anos, dezenas de ações judiciais foram movidas contra a DOF na China, devido a empréstimos e contas não pagos. Os tribunais chineses emitiram pelo menos 16 “ordens de restrição ao consumo” contra o fundador da empresa, Li Zhenyu. Tal pena proíbe os devedores de atividades como viajar de primeira classe, comprar imóveis e mandar seus filhos para escolas caras.

Apesar das incontestáveis irregularidades, o veto imposto pelos EUA à empresa chinesa não é seguido por outras nações. O principal destino do atum pescado pela DOF é o Japão, e entre os compradores está uma subsidiária de uma das maiores empresas do país, a Mitsubishi. Segundo a companhia japonesa em questão, as negociações com a DOF foram suspensas em abril de 2020, um mês antes de as mortes terem sido reveladas pela imprensa.

Recrutadores na Indonésia

Assim como a quantidade de barcos pesqueiros, o que também aumentou consideravelmente na Indonésia nos últimos anos foi o número de agenciadores em busca de homens dispostos a trabalhar em barcos pesqueiros. Em meados da década passada, as empresas desse ramo não passavam de algumas poucas dezenas. Hoje, são mais de 600.

Há empresas sérias, que oferecem treinamento básico aos trabalhadores e cumprem o acordo salarial previamente estabelecido. Entretanto, inclusive nesses casos é comum a retenção de parte do pagamento acordado caso o pescador deixe o barco antes do fim da jornada de dois anos. E a legislação nacional não dá muito suporte nesses casos.

Mesmo dentro do governo indonésio, o processo de recrutamento para a pesca em alto mar é um universo paralelo em relação ao dos demais ramos laborais “Infelizmente, o processo legal existente não pode garantir que nossos pescadores migrantes não estarão sujeitos ao tráfico humano ou ao trabalho forçado”, disse Irham Ali Saifuddin, oficial da OIT (Organização Internacional do Trabalho) em Jacarta.

Por que isso importa?

Além dos abusos aos direitos humanos, os pesqueiros chineses são responsáveis também pela maior fatia de pesca IUU (ilegal, não declarada e não regulamentada, da sigla em inglês) em todo o mundo. Enquanto Beijing diz ter cerca de 2,6 mil navios pesqueiros no mundo, especialistas do britânico Overseas Development Institute estimam a frota chinesa em 17 mil. 

Barcos da ONU e da Coreia do Sul em treinamento para combater a pesca ilegal (Foto: Reprodução/FAcebook)

O alerta de diversos governos ao redor do mundo para o avanço das milícias da China em águas internacionais está ancorado em uma prática recorrente de navios pesqueiros chineses que ganhou contornos globais. Primeiro, os navios se afastam das águas nacionais. Já fora da jurisdição, desligam o sistema de rastreamento por satélite e invadem mares proibidos sem serem detectados, uma prática proibida pelas leis internacionais.

A delimitação marítima começou em 1982, na Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o Direito do Mar. À época, os Estados-Membros concordaram em controlar os recursos marítimos dentro de uma ZEE (zona econômica especial) de até 200 milhas marítimas. Além desse raio, são águas internacionais.

Acusadas de pesca ilegal, as embarcações com bandeiras da China não só geram uma crise ambiental, como desafiam as fronteiras geopolíticas. A ilegalidade leva a perdas econômicas dos governos e compromete a subsistência dos pescadores nativos e das empresas da cadeia de abastecimento de pescado locais. É uma equação simples: sem essa fonte de renda, as regiões atingidas sofrem com o aumento da pobreza. Os países menos desenvolvidos são mais vulneráveis, devido à falta de recursos para combater e monitorar a pesca de forma eficaz.

Estima-se que 24% das capturas marinhas do Oceano Pacífico não são declaradas a cada ano. Destes, 50% são comercializados ilegalmente, causando de US$ 4,3 bilhões a US$ 8,3 bilhões em perdas de receitas diretas.

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