Para China, democracia gera instabilidade e caos, diz especialista

Objetivo de política externa seria oferecer uma alternativa autoritária ao modelo de democracia liberal do Ocidente

por Anna Rangel

O governo da China vê os valores democráticos como uma fonte de destabilização de um governo duradouro em Beijing, e por isso trabalha para trazer uma alternativa centrada no autoritarismo.

É o que avalia a pesquisadora Nadège Rolland, do Centro Nacional de Pesquisa sobre a Ásia (do inglês National Bureau of Asian Research), em Washington (EUA).

De acordo com Rolland, revoltas como a Primavera Árabe ou nos países ex-soviéticos são vistas pelo comando local como tática dos EUA para aumentar sua influência nessas regiões. E a meta seria chegar na China.

“O [Partido Comunista] acredita que o Ocidente, liderado pelos norte-americanos, tem tentado transformar o regime político chinês por meio de uma subversiva ‘evolução pacífica'”, afirma.

Para China, democracia gera instabilidade e caos, diz especialista
Treinamento para parada militar em Hebei, na China (Foto: Flickr/gadgetdan)

A pesquisadora é especialista em assuntos políticos e de segurança da China, sobretudo relacionados à sua política de defesa e seus impactos na ordem regional da Ásia. Fez carreira no governo da França, seu país natal, como assessora do Ministério da Defesa.

Rolland é mestre em língua chinesa e estudos chineses contemporâneos pelo Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais, em Paris, e em estudos estratégicos pela Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura.

Veja a seguir a conversa da pesquisadora com A Referência, na íntegra.

Como o Partido Comunista da China percebe a promoção da democracia liberal por parte do Ocidente? Para os dirigentes chineses, seria prejudicial a uma ordem mundial de certa forma pacífica?

O Partido acredita que os valores universais e a promoção da democracia liberal ameaçam sua legitimidade e sobrevivência. Eles veem a promoção da democracia liberal pondo em perigo um governo duradouro.

Acreditam que o Ocidente, liderado pelos EUA, tem tentado transformar o regime político da China por meio de uma subversiva “evolução pacífica”. Também acreditam que as transformações políticas ocorridas no espaço pós-soviético depois do fim da Guerra Fria (as “revoluções das cores” em países como a Ucrânia) e no Oriente Médio em 2011 (a “Primavera Árabe”) foram fomentadas pelos EUA para derrubar governos autoritários e aumentar a influência norte-americana.

Por conta disso, o Partido Comunista chinês vê a promoção da democracia como uma fonte de desestabilização e caos.

Como a senhora definiria o sistema de crenças do Partido Comunista e como ele mudou com o passar do tempo?

Embora seu nome ainda inclua o termo “comunista”, não sobraram muitos ideais comunistas na ideologia do Partido. Eles hoje não se posicionam em favor da luta de classes nem pelo alcance de uma sociedade que divida a detenção dos meios de produção.

Essa ideologia hoje apresenta uma mistura idiossincrática de camadas e elementos de marxismo-leninismo, capitalismo, nacionalismo e, muito marginalmente, Confucionismo. Esse acúmulo de camadas é um testamento à capacidade do Partido de se adaptar a novas condições para manter seu poder.

Podemos esperar uma presença maior do Exército chinês no futuro? Em caso positivo, em que se baseia essa estratégia?

Nos últimos 40 anos, desde o início da era de reformas, o Exército chinês avançou muito e se modernizou rapidamente. Coisas que eram impensáveis até mesmo cinco anos atrás, como o estabelecimento de uma base naval permanente no Djibuti [país no Chifre da África] ou ter submarinos patrulhando o Oceano Índico, agora são reais.

Em termos absolutos, o Exército chinês ainda fica atrás do norte-americano, em termos de capacidade material e operacional. Mas, em escala regional, se tornou uma das mais avançadas estruturas militares.

À medida em que os interesses econômicos e nacionais da China são cada vez mais espalhados pelo globo, haverá uma racionalidade natural e crescente do Exército chinês de defender e proteger a segurança dos chineses e de seus ativos pelo mundo. A forma como isso se desenrolará ainda não está clara.

O que podemos esperar em termos de mudanças na ordem internacional, do mundo pós-Covid-19?

Ainda é cedo para afirmar. Os efeitos da pandemia na economia ainda são desconhecidos. As consequências sociais e geopolíticas, de um ponto de vista mais amplo, não podem ser previstas.

Alguns observadores acreditam que o mundo pós-Covid será drasticamente diferente do anterior. Isso pode levar a uma aceleração, e não uma reversão, de tendências que já existiam.

O que você espera da relação bilateral entre China e EUA para os próximos anos? Como vê o desenrolar dessa disputa?

Também é difícil dizer. As eleições nos EUA no fim do ano podem trazer algumas mudanças. Mas a evolução interna da China, e a direção mais assertiva e hostil tomada pelo país sob Xi Jinping, pode dificultar muito para qualquer governo norte-americano continuar lidando com Beijing apenas por um brando engajamento e pela esperança de cooperação no futuro próximo.

Alguns exemplos dessa direção do governo de Xi são as horríveis violações dos direitos humanos, o tratamento impensável dispensado aos uigures [povo muçulmano, culturalmente ligado às nações da Ásia Central] e outras minorias étnicas, quebra de promessas em relação a Hong Kong [a China havia se comprometido com manter as liberdades no território até 2047] e disputas com a Índia na fronteira, no Himalaia.

Também há táticas de assédio nos mares da China Oriental e Meridional e no Estreito de Taiwan, práticas mercantilistas e esforços para interferir em sociedades e sistemas políticos democráticos. Além disso, há sua disposição para se firmar como um modelo alternativo à democracia liberal.

Como a iniciativa do Cinturão e Rota (em inglês, Belt and Road), que envolve milhões de dólares em investimentos em todo o mundo, ajuda a impulsionar a agenda chinesa?

Eu escrevi um livro inteiro sobre isso, chamado “O Século Euro-asiático da China? Implicações Políticas e Estratégicas da Iniciativa do Cinturão e Rota” (sem tradução para o português, 208 págs., editora NBAR, US$ 29,95 em pdf). De forma resumida, a iniciativa é o principal instrumento de Beijing para expandir sua influência em detrimento dos EUA e do Ocidente. O objetivo é criar uma ordem regional sinocêntrica que irá contra a democracia e em favor do autoritarismo.

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