Exércitos privados se multiplicam na Rússia, formados por lutadores e até torcedores uniformizados

Empresas privadas e estatais seguem o modelo do Wagner Group, recrutam mercenários e enxergam a guerra como um bom negócio

Torcedores uniformizados do Spartak e do CSKA, principais clubes de futebol de Moscou, e lutadores de artes marciais constituem a base de combatentes de algumas das novas empresas paramilitares privadas (PMCs, da sigla em inglês) criadas recentemente na Rússia. Essas entidades seguem os passos do Wagner Group e colocam seus mercenários a serviço do Kremlin na guerra da Ucrânia.

Um desses novos exércitos é a PMC Española, inicialmente criada por torcedores uniformizados de extrema direita do Spartak, cuja rotina envolve não apenas assistir aos jogos de futebol da equipe, mas também brigar com rivais de outras agremiações. Estão, portanto, habituados à violência. Hoje, o recrutamento não se limita a um clube, e hooligans de outras agremiações, inclusive do arquirrival CSKA, também são bem-vindos.

Segundo o site investigativo russo Meduza, o projeto avançou após despertar o interesse dos irmãos Arkady e Boris Rotenberg, amigos de juventude do presidente Vladimir Putin. Uma fonte ouvida pela reportagem, que pediu para ter a identidade preservada, diz que os dois bilionários foram responsáveis por transformar a organização de torcedores oficialmente em uma PMC.

Integrantes do exército privado Soyuz: parte do esforço de guerra russo (Foto: reprodução/site oficial)

O escolhido para gerenciar a Española foi Viktor Shendrik, chefe de segurança da estatal ferroviária Russian Railways. Ex-agente do FSB (Serviço de Segurança Federal), sucessor da extinta KGB, tem o currículo ideal para a empreitada. Ele comanda unidades de assalto, de reconhecimento, de artilharia, de guerra eletrônica, de drones e de atiradores de elite que atuam na guerra da Ucrânia.

Os Rotenberg, porém, não são os únicos a investir em armas e soldados. “Muitas grandes empresas estão criando seus próprios exércitos privados neste momento, e os irmãos queriam criar seu próprio exército privado com base na Española”, disse a fonte.

Dos tatames para o front

Quem também participou ativamente do conflito foi a Equipe RSBI Soyuz, composta por lutadores de artes marciais. Os idealizadores são duas autoridades estatais: Sergei Kirienko, primeiro vice-chefe da Administração Presidencial, e Yuri Trutnev, vice-primeiro-ministro da Rússia e enviado presidencial ao Distrito Federal do Extremo Oriente.

A criação do exército foi anunciada durante um grande evento escolar de artes marciais em dezembro de 2022, segundo reportagem do site investigativo russo iStories. Trutnev afirmou no discurso inaugural que o batalhão surgiu especificamente para combater na Ucrânia, sob o argumento de que “os verdadeiros combatentes hoje são aqueles que derramam sangue pela nossa pátria.”

A Soyuz (União, em tradução literal), que no final do ano passado contava com 145 membros, tem, ou teve, em suas fileiras alguns membros ilustres. Entre eles Sergei Uvitsky, campeão europeu de caratê Kyokushin, que foi morto em combate. O próprio Kirienko é um hábil lutador de aikido, e junto de Trutnev comanda também a União Russa de Artes Marciais (RSBI, na sigla em russo), que reúne 63 federações esportivas de diferentes estilos de artes marciais de todo o país.

Para converter os artistas marciais em soldados, a Soyuz os enviou a um centro de preparação das forças especiais da Chechênia comandado por um assessor direto do líder local Ramzan Kadyrov, indicado por Putin. Embora tenham sido os criadores do exército privado, Kirienko e Trutnev atribuíram o comando a um amigo, Ramil Gabbasov, diretor executivo da RSBI.

Aos dois padrinhos cabe atualmente a missão de financiar a entidade, o que acontece com o apoio de empresas do Extremo Oriente russo, onde atua Trutnev, e da Rosatom, a companhia estatal de energia nuclear da Rússia. O dinheiro é gasto em armas, treinamento e aparelhos de uso militar diversos, como sistemas de detecção de drones.

Outros casos

Casos como os das PMCs Española e Soyuz têm se tornado cada vez mais comuns na Rússia. Com as Forças Armadas regulares ocupadas na Ucrânia, empresas privadas e estatais criam suas próprias milícias sob o argumento de proteger seus interesses no exterior. Paralelamente, treinam mão de obra capaz de apoiar os esforços de guerra do Kremlin.

A agência estatal Rossotrudnichestvo, voltada ao desenvolvimento de laços com países estrangeiros, anunciou seu próprio exército privado em abril do ano passado. O idealizador, Evgeny Primakov, chefe do órgão, afirmou que a presença de “pessoas bem armadas, robustas e motivadas” tornou-se crucial ante à “deterioração da situação com o funcionamento de nossos escritórios em países hostis.”

A estatal de energia Gazprom adotou a mesma solução em fevereiro do ano passado, ao lançar sua própria PMC. Na ocasião, a inteligência do Ministério da Defesa da Ucrânia revelou a informação dizendo que Moscou vive uma verdadeira “corrida armamentista”, com figuras importantes do governo e da sociedade investindo em exércitos privados inspirados no Wagner Group.

A inteligência ucraniana explicou que a criação das PMCs é legitimada por uma lei russa de “segurança de objetos do complexo de combustível e energia”, que garante a entidades do setor “o direito de estabelecer uma organização de segurança privada”.

Sob as ordens de Putin

Esses não são os únicos exemplos. Outros dois exércitos privados conhecidos, Redut e Convoy, foram deliberadamente criados como alternativas ao Wagner Group, em processo de dissolução. A diferença é que, enquanto o primo famoso era gerido por Evgeny Prigozhin, morto misteriosamente na queda de um avião pouco após se insurgir contra Putin, as versões mais recentes se submetem ao Kremlin.

O exército Redut foi fundado em 2008 e se reorganizou em 2022, sob controle do Ministério da Defesa. O Convoy, por outro lado, é relativamente novo, criado na Crimeia em 2022 e financiado por um banco majoritariamente estatal, bem como por um oligarca próximo do presidente russo.

Em artigo publicado pela revista Foreign Policy em dezembro de 2023, Lucian Staiano-Daniels, especialista em conflitos violentos e professor assistente visitante na Universidade Colgate, dos EUA, não é só a guerra da Ucrânia que leva o governo russo a apostar nos exércitos privados. Eles também são protegem interesses comerciais do país no exterior. Sobretudo na África, onde o Wagner era especialmente ativo.

“Se as organizações dentro do próprio governo russo conseguirem assumir os ativos do Wagner Group na África, isto poderá representar um fortalecimento do poder estatal russo”, diz Staiano-Daniels no texto, sugerindo que a morte de Prigozhin foi também uma forma de Moscou tomar para si as lucrativas operações africanas dos mercenários.

Com esse objetivo em mente, Moscou criou recentemente o exército privado Africa Corps, que assumirá a funções do Wagner Group no continente africano, segundo a rede Bloomberg. Trata-se de uma fonte de renda crucial para a Rússia, afogada nos gastos com a guerra da Ucrânia. Moscou faturou, somente desde o início do conflito, US$ 2,5 bilhões com ouro de países africanos.

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