A Itália chegou ao fim da Nova Rota da Seda

Artigo diz que o tempo em que Roma se dispunha a entrar em acordos ambiciosos com Beijing parece estar chegando ao fim

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do think tank Center for European Policy Analysis (CEPA)

Por Michael Sheridan*

A Itália vem sofrendo um caso de Síndrome de Marco Polo. A partir da década de 1980, os governos italianos passaram a cortejar a China. Seus políticos esperavam cortar a dívida por meio de investimentos estrangeiros. Os diplomatas imaginaram que poderiam negociar com a herança do mercador veneziano para fazer a ponte entre o leste e o oeste. As empresas do setor público, administradas por representantes políticos, achavam que tinham uma afinidade natural com as estatais chinesas.

A síndrome – uma história de recompensas imaginárias e duras desilusões – atingiu seu pico em 2019, quando a Itália aderiu à iniciativa Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative) da China. O presidente Xi Jinping visitou Roma em esplendor e descreveu o acordo como “a ordem natural do universo”. Seu anfitrião, o primeiro-ministro Giuseppe Conte, do movimento populista Cinco Estrelas, assinou. A Itália foi o único país do G7 a ingressar, levando o South China Morning Post, um diário de Hong Kong, a considerá-lo uma vitória diplomática para a China. O tenor Andrea Bocelli cantou nas comemorações.

Assim como Marco Polo, os populistas inexperientes estavam em uma paisagem de sonho. A Itália acordou. Para surpresa geral, a coalizão de direita liderada por Giorgia Meloni agora revisará o acordo da Nova Rota da Seda, que deve ser renovado em 2024. Ela chamou isso de “grande erro” e disse que “não tem vontade política” para ajudar a China a se expandir para a Europa. Em entrevista em 28 de maio, ela acrescentou que era “possível ter boas relações, também em áreas importantes, com Beijing” sem fazer parte da BRI. Os sinais são de que uma “vitória diplomática” pode se tornar um revés estratégico.

Primeiro, os números. Dados oficiais mostram que a Itália está tendo um enorme déficit comercial com seu parceiro. Em 2022, as exportações italianas para a China totalizaram 16,4 bilhões de euros (US$ 17,6 bilhões) contra importações no valor de 57,5 ​​bilhões de euros, uma soma que quase dobrou desde o ano de assinatura de 2019. Não há retorno nisso.

Em seguida, segurança. Uma comissão parlamentar em Roma identificou 400 grupos chineses com participações em 760 empresas italianas em setores considerados altamente lucrativos ou estratégicos. Os oficiais de inteligência perceberam então o quão rápido e eficaz foi o impulso de investimento chinês. Um pushback foi iniciado.

O governo Meloni está observando de perto a Pirelli, um dos titãs industriais da Itália, cujo maior acionista é a empresa chinesa Sinochem, que detém uma participação de 37%. Sob um novo plano corporativo, a Sinochem pode acabar nomeando a maior parte do conselho e escolhendo o próximo CEO. As autoridades podem invocar as regras de investimento do “poder de ouro” para bloqueá-lo.

A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni: cada vez mais distante da China (Foto: Twitter/Reprodução)

Esses poderes especiais permitem que os governos italianos limitem a troca de informações confidenciais e restrinjam os direitos de voto, entre outras medidas regulatórias. As empresas sob escrutínio incluem a Vodafone Italia, que tem uma parceria com a Huawei, empresa chinesa de telecomunicações dirigida por um ex-oficial do Exército de Libertação do Povo (ELP) da China.

As autoridades também estão olhando para a State Grid da China, uma gigante de energia, que detém ações de uma série de empresas de energia italianas por meio de um fundo de investimento. Eles podem proibir as câmeras de segurança fabricadas pela Hikvision e Dahua, duas empresas importantes para o Estado de vigilância da China.

O ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani, uma figura moderada da ala católica e monarquista do conservadorismo italiano, disse ao diário romano Il Messaggero que era uma questão de pragmatismo.

“As regras devem ser iguais para todos. Não ao dumping social e ambiental, não à concorrência desleal e não à retirada de know-how em vez de investimento de longo prazo”, afirmou.

Para ser justo, o processo de despertar começou sob o primeiro-ministro tecnocrata Mario Draghi. Seu governo bloqueou a Shenzhen Investment Holdings, um veículo para aquisições patrocinadas pelo Estado, de comprar uma participação na LPE, uma empresa italiana que fabrica semicondutores para uso militar.

Sob a tutela de Draghi, o debate começou a mudar. Oficiais de defesa estavam preocupados com o interesse da China em comprar uma base no porto de Taranto, lar de uma base naval histórica no flanco sul da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). As ambições chinesas também se concentraram em Trieste, que é vista como um ponto nodal para o impulso da Nova Rota da Seda para a Europa.

Finalmente, havia a política. Como sempre, a construção de influência da China foi desajeitada. O embaixador de Beijing, Jia Guide, insinuou represálias e disse que os líderes perspicazes devem permanecer do lado direito de Beijing. Jornalistas do principal diário financeiro, Il Sole-24 Ore, reclamaram de propaganda paga em um suplemento publicitário de notícias sobre a República Popular. A imagem da China não é ajudada por seus problemas com o Vaticano e seu péssimo histórico de direitos humanos.

É provável que Meloni deixe o acordo da Nova Rota da seda cair. Não se encaixa em seu quadro geral. Ela quer que a Itália se alinhe com os Estados Unidos, apoia a Ucrânia, despreza a Rússia e está comprometida com a aliança da Otan e a União Europeia (UE). Convenientemente, isso também coloca alguns de seus parceiros de coalizão em desvantagem. O vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, um admirador de longa data de Vladimir Putin, é reduzido a pedir “comércio de 360 ​​graus”. Até Salvini sabe que o governo autoritário perdeu seu brilho.

Talvez tenha sido a Covid-19 que tirou a Itália de seu devaneio. O país pagou um preço alto, mas houve pouco ou nenhum racismo antichinês. Houve, no entanto, uma sensação de choque. Poucos esquecerão a imagem de Andrea Bocelli, que já havia festejado o acordo da BRI, sozinho em frente à Catedral de Milão, para cantar em homenagem ao sofrimento.

*autor de The Gate to China: A new history of the People’s Republic and Hong Kong e correspondente do The Sunday Times no Extremo Oriente por 20 anos, bem como do The Independent em Roma

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