Rapper que se juntou ao Estado Islâmico começa a ser julgado na Espanha

Abdel-Majed Abdel Bary foi preso em 2020, na Espanha, denunciado por um pedido feito em um aplicativo de entrega de comida

Começou nesta semana, na Espanha, o julgamento do rapper egípcio-britânico Abdel-Majed Abdel Bary, preso em abril de 2020 sob a acusação de ter se juntado ao Estado Islâmico (EI). Antes de ser detido, ele chegou a ser considerado um dos extremistas mais procurados do mundo. As informações são do jornal The Guardian.

Bary, que perdeu a cidadania britânica devido à ligação com o grupo extremista, chamou a atenção das autoridades ao publicar no Twitter, em agosto de 2014, uma foto na qual aparece segurando uma cabeça decapitada, imagem supostamente registrada no período em que visitou a Síria.

De origem egípcia, o rapper, antes conhecido como L Jinny, tem o fundamentalismo islâmico na família. Ele é filho de Adel Abdel Bary, proeminente combatente da Al-Qaeda extraditado para os EUA em 2002 após fazer parte de atentados contra as embaixadas norte-americanas no Quênia e na Tanzânia.

Bary conseguiu retornar à Europa em 2020, tendo ingressado no país de barco como um imigrante sem documentos. Ele viva com outros dois militantes da organização extremista quando cometeu um deslize que custou sua liberdade: pediu pela internet um kebab, conhecido no Brasil como churrasco grego. As informações registradas pelo aplicativo de entrega de comida denunciaram o paradeiro dele.

Entre os crimes imputados ao rapper estão o de financiar o terrorismo. Para tanto, ele e outros amigos teriam organizado golpes na internet para arrecadar dinheiro. Se considerado culpado, pode ser sentenciado a até nove anos de prisão.

Do rap à jihad: Abdel Bary trocou rimas por execuções (Foto: Reprodução/YouTube)

Durante o julgamento, o réu disse que considera as acusações “absurdas” e negou que tenha uma ideologia radical. Quanto à viagem à Síria, diz que teve finalidade humanitária. “A Al-Qaeda e todos os extremistas radicais… eu os odeio. Não concordo com a ideologia nem com as ações deles”, declarou.

Bary também negou que tenha mantido um perfil no Twitter para difundir ideologia radical e disse que jamais esteve em Raqqa, na Síria, onde teria sido registrada a chocante foto. Alegou que não é ele a pessoa que aparece na imagem segurando a cabeça.

Imigrantes ilegais

Quando Bary foi preso, na cidade espanhola de Almeria, o jornal local La Voz de Almería apurou que ele e os outros dois terroristas com quem vivia chegaram à província a bordo de uma balsa improvisada pelo Cabo da Gata, no sul da Península Ibérica. Eles aportaram na Espanha após atravessarem o Mediterrâneo vindos da Argélia.

Os extremistas conseguiram driblar a fiscalização em um dia em que cinco barcos ancoraram e nem todos os imigrantes foram interceptados pelo Guarda Civil. Em ação conjunta com o Centro Nacional de Inteligência (CNI), os agentes trabalhavam com informações que davam conta da chegada de terroristas vindos da Síria pela nova rota. Mas não sabiam o local exato onde atracariam.

Como eles conseguiram ingressar na Espanha, a inteligência local passou a focar no monitoramento das redes sociais e rastreamento dos celulares dos suspeitos. Um colaborador do EI, Abderrezak Siddiki, que chegou ao país junto com Bary, foi identificado como usuário no aplicativo UberEats, que forneceu o endereço quando um pedido de comida foi feito. Os extremistas foram pegos em um apartamento alugado via Airbnb.

Desde então, Abdel Bary está preso na penitenciária de Soto del Real, na região de Madri. Ele sempre negou a acusação de integrar a organização terrorista, argumentando que foi a Almería para “trabalhar em estufas ou colhendo frutas”. Quanto ao período que passou na Síria, diz que prestava apoio “humanitário” aos muçulmanos.

As forças de segurança espanholas acreditam que o trio planejava um ataque no continente europeu. “O fato de ele pretender chegar à margem de qualquer meio de viagem regular leva a crer que seu objetivo era o de cometer qualquer tipo de ação relacionada com sua militância terrorista ou, no mínimo, solicitar apoio local para viajar por território europeu”, disse uma autoridade espanhola à época da prisão.

Por que isso importa?

Embora ainda seja relevante no cenário extremista global, o EI tem se enfraquecido financeira e militarmente. Em 2017, o exército iraquiano anunciou ter derrotado a organização no país, com a retomada de todos os territórios que ela dominava desde 2014. O grupo, que chegou a controlar um terço do Iraque, hoje mantém apenas células adormecidas que lançam ataques esporádicos, quase sempre focados em agentes do governo. Já as FDS (Forças Democráticas Sírias), uma milícia curda apoiada pelos EUA, anunciaram em 2019 o fim do “califado” criado pela organização extremista na Síria.

Em fevereiro de 2022, o grupo sofreu mais um duro golpe quando o exército norte-americano anunciou ter matado Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurashi, principal líder da facção. Durante operação antiterrorismo dos EUA na Síria, ele explodiu uma bomba que carregava junto ao corpo, matando também mulheres e crianças que o acompanhavam. Já o sucessor dele, Abu al-Hassan al-Hashimi al-Qurashi, foi morto em outubro, segundo anunciou o próprio grupo.

De acordo com um relatório do Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) publicado em fevereiro do ano passado, as perdas territoriais e de pessoal transformaram o EI, que antes controlava boas partes da Síria e do Iraque, em “uma insurgência principalmente rural, resistindo à pressão antiterrorista sustentada pelas forças da região”.

A pandemia também foi um desafio, pois impedia as “viagens transfronteiriças, diminuindo as ameaças decorrentes de fluxos de combatentes em zonas de conflito e viagens terroristas mais amplas em zonas de não conflito”. Por outro lado, a estagnação do terrorismo em meio à onda de Covid-19 aumentou as “oportunidades de recrutamento e radicalização online”, criando a perspectiva de uma retomada futura das ações extremistas globais.

Um risco que o grupo ainda oferece é a presença de milhares de ex-combatentes em prisões e campos de deslocados em várias partes do mundo. Devolvê-los às nações de origem e processá-los judicialmente é um desafio para os Estados-Membros da ONU, e os estabelecimentos que abrigam os extremistas são um potencial alvo de ataques para o EI. Exatamente como ocorreu na prisão de Ghwayran, na cidade de al-Hasakah, na Síria, invadida pelo grupo com a meta de libertar seguidores.

“Devido à capacidade severamente degradada, a sobrevivência futura do EI depende de sua capacidade de reabastecer as fileiras por meio de tentativas mal concebidas, como o ataque a Hasakah”, afirmou o major-general norte-americano John W. Brennan Jr., comandante da força de coalização liderada pelos EUA para combater o EI. Segundo ele, a ação na prisão síria gerou enorme prejuízo ao grupo terrorista, que “sentenciou à morte muitos dos seus que participaram deste ataque”.

Atualmente, o principal reduto do EI é o continente africano, onde consegue se manter relevante graças ao recrutamento online e à ação de grupos afiliados regionais. A expansão do grupo em muitas regiões da África desde o início de 2021 é alarmante e pode marcar sua retomada de força. No Sudeste Asiático, ao contrário, os países da região têm obtido sucesso significativo em interromper o terrorismo de facções afiliadas.

No Brasil

Episódios recentes mostram que o Brasil é visto como porto seguro pelos extremistas. Em dezembro de 2013, levantamento do site The Brazil Business indicava a presença de ao menos sete organizações terroristas no Brasil: Al-Qaeda, Jihad Media Battalion, Hezbollah, Hamas, Jihad Islâmica, Al-Gama’a Al-Islamiyya e Grupo Combatente Islâmico Marroquino.

Em 2001, uma investigação da revista Veja mostrou que 20 membros terroristas de Al-Qaeda, Hamas e Hezbollah viviam no país, disseminando propaganda terrorista, coletando dinheiro, recrutando novos membros e planejando atos violentos.

Em 2016, duas semanas antes do início dos Jogos Olímpicos no Rio, a PF prendeu um grupo jihadista islâmico que planejava atentados semelhantes aos dos Jogos de Munique em 1972. Dez suspeitos de serem aliados ao Estado Islâmico foram presos e dois fugiram.

Mais recentemente, em dezembro de 2021, três cidadãos estrangeiros que vivem no Brasil foram adicionados à lista de sanções do Tesouro Norte-americano. Eles são acusados de contribuir para o financiamento da Al-Qaeda, tendo inclusive mantido contato com figuras importantes do grupo terrorista.

Para o tenente-coronel do exército brasileiro André Soares, ex-agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), os recentes anúncios do Tesouro causam “preocupação enorme”, vez que confirmam a presença do país no mapa das organizações terroristas islâmicas.

“A possibilidade de atentados terroristas em solo brasileiro, perpetrados não apenas por grupos extremistas islâmicos, mas também pelo terrorismo internacional, é real”, diz Soares, mestre em operações militares e autor do livro “Ex-Agente Abre a Caixa-Preta da Abin” (editora Escrituras). “O Estado e a sociedade brasileira estão completamente vulneráveis a atentados terroristas internacionais e inclusive domésticos, exatamente em razão da total disfuncionalidade e do colapso da atual estrutura de Inteligência de Estado vigente no país”. Saiba mais.

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