Rússia ameaça tirar cidadania de manifestante antiguerra nascido na Armênia

Arshak Makichyan, ambientalista e ativista antiguerra, será julgado no dia 27 de junho e pode perder o direito de viver no país

Nascido na Armênia, Arshak Makichyan tem a cidadania russa há quase 20 anos e passou a maior parte da vida em Moscou. Em meio à repressão imposta pelo governo àqueles que se opõem à guerra na Ucrânia, caso dele, o ativista resolveu se mudar para a Alemanha. E corre o risco de jamais voltar para casa, vez que a Rússia analisa a possibilidade de retirar-lhe a cidadania. As informações são da agência Al Jazeera.

Makichyan e a mulher, a russa Polina Oleinikova, seguiram para a Alemanha em março, quando o Kremlin apertou o cerco contra os manifestantes antiguerra. Foi naquele mês que entrou em vigor no país a lei que pune quem “desacreditar as forças armadas” ou divulgar o que o governo considere “notícias falsas” sobre o conflito.

Velho conhecido das autoridades russas, tendo sido preso diversas vezes por realizar protestos solitários, a maioria deles contra as mudanças climáticas, Makichyan agora enfrenta um processo que pode deixá-lo sem a cidadania russa. A Justiça alega que a obtenção de cidadania aconteceu através de um processo ilegal e julgará o caso no dia 27 de junho. Ele diz que as acusações têm motivação meramente política.

Arshak Makichyan em protesto contra as mudanças climáticas em janeiro de 2022 (Foto: reprodução/Facebook)

O ativista já foi detido pelas autoridades russas em três ocasiões, a primeira delas em 2019, ao protestar contra as mudanças climáticas. A segunda detenção ocorreu neste ano, em janeiro, em uma ação contra a intervenção russa no Cazaquistão. E a terceira em 25 de fevereiro, um dia após a invasão russa à Ucrânia. Foi surpreendido pela polícia quando saía de casa e sequer havia iniciado qualquer tipo de protesto.

Segundo ele, processos para retirar cidadania tendem a se tornar mais uma arma a serviço da repressão. “Eu cresci na cultura russa, mas não acho que seja sobre ser russo ou armênio ou qualquer outra coisa. É sobre ter os mesmos direitos de viver na Rússia. Existem milhões de armênios e outras nacionalidades na Rússia. Se eu perder minha cidadania por ser contra a guerra, eles podem usar o mesmo instrumento contra muitas, muitas outras pessoas”.

Legalmente, o caso de Makichyan gera debate e é inédito. A Justiça argumenta que ele deu informações incorretas quando obteve a cidadania. Cita como exemplo o endereço de residência do ativista, que difere daquele cadastrado pelo governo. Também alega que alguns documentos necessários para o processo de cidadania foram “perdidos”.

“Os serviços de migração muitas vezes perdem documentos e, assim, tentam encobrir seus erros”, disse Olga Podoplelova, chefe de litígios da ONG Russia Behind Bars (Rússia Atrás das Grades, em tradução literal). “Esta prática foi repetidamente condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e, em geral, os cidadãos muitas vezes ganham processos contra o Ministério do Interior com base nisso”.

Segundo ela, um caso semelhante foi registrado em 2018, quando o criminoso Tariel Oniani, original da Geórgia, teve a cidadania retirada pelo governo russo a fim de conter o avanço da quadrilha que ele liderava. Posteriormente, foi extraditado para a Espanha, onde era procurado. No entanto, jamais foi registrado um caso assim contra um ativista político.

“Temos diante de nós um esquema muito simples e conveniente para o Estado, que pode ser aplicado a quase qualquer ativista que tenha recebido a cidadania russa não por nascimento”, explicou ela. “Até agora, este é o primeiro caso. Mas as autoridades de migração já dominaram o esquema. Seu uso mais frequente para fins políticos é uma questão de tempo”.

Pressão governamental

O presidente Vladimir Putin já se movimenta para apertar o cerco legalmente contra aqueles que obtiveram a cidadania russa ao longo da vida, não por nascimento. Ele propõe que a lei permita a “rescisão de cidadania” em casos de traição, espionagem e tráfico de drogas. A iniciativa, porém, ainda não foi convertida em lei.

Em abril deste ano, já com a guerra em andamento, o legislador Vyacheslav Volodin sugeriu que fosse retirada a cidadania daqueles que o governo considerasse traidores por se oporem à “operação militar especial” de Moscou na Ucrânia. E lamentou que “não houvesse nenhum procedimento para revogar a cidadania e impedi-los de entrar em nosso país”. A proposta foi considerada inconstitucional.

Makichyan chegou a ser questionado por outro legislador governista, Alexander Khinshtein, sobre o que o leva a protestar contra o país. “Por que você precisa de um passaporte russo se odeia seu país e seu povo?”, perguntou o político.

O ativista contesta o argumento. “Faço ativismo há três anos e arrisco minha liberdade por um belo futuro russo, e a Rússia é muito importante para mim”, respondeu ele, que promete lutar até o fim para não perder o direito de viver na Rússia. “Estamos tentando tornar este caso o mais visível e barulhento possível, porque a única maneira de influenciar a decisão do governo é a pressão pública”.

Por que isso importa?

Na Rússia, protestar contra o governo já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia. Os protestos coletivos desapareceram das ruas da Rússia desde que o governo passou a usar a pandemia de Covid-19 como argumento para punir grandes manifestações, sob a alegação de que o acúmulo de pessoas fere as normas sanitárias. Assim, tornou-se comum ver pessoas solitárias erguendo cartazes com frases contra o governo.

Desde a invasão do país vizinho por tropas russas, no dia 24 de fevereiro, o desafio dos opositores do presidente Vladimir Putin aumentou consideravelmente, com novos mecanismos legais à disposição do Estado e o aumento da violência policial para silenciar os críticos. Uma lei do início de março, com foco na guerra, pune quem “desacredita o uso das forças armadas”.

Dentro dessa severa nova legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 16,9 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia, que é como o governo descreve a guerra. A reclusão pode chegar a 15 anos.

Artista russa é presa por protestar contra a guerra nas etiquetas de preços
Jovem russa exibe cartaz com a frase “não matarás” em protesto antiguerra (Foto: reprodução/Twitter)

Apesar dos riscos, muitos russos enfrentam a repressão e a possibilidade de serem presos e protestam de diversas maneiras para deixar clara sua oposição ao conflito.

Em Moscou, no dia 15 de março, ignorando todos esses riscos, uma mulher escolheu como ponto de protesto a Catedral do Cristo Salvador. Em um cartaz, reproduziu o sexto mandamento segundo a Igreja Ortodoxa: “Não matarás”. Outra mulher desafiou a censura e se posicionou em uma esquina próxima do Kremlin com um cartaz que dizia “Não à guerra”. Ambas foram retiradas por policiais e colocadas em um camburão menos de dez minutos depois de exibirem os cartazes.

Yevgenia Isayeva, uma artista e ativista da cidade russa de São Petesburgo, optou por um protesto mais gráfico no dia 27 de março. Com um vestido branco, ela se posicionou em frente à prefeitura da cidade e, então, despejou tinta vermelha sobre a roupa, enquanto dizia repetidamente: “Meu coração sangra, meu coração sangra…”. Também teve poucos minutos para se manifestar antes de ser retirada à força.

Há, ainda, os manifestantes que querem deixar sua mensagens sem expor a própria imagem. Casos dos grafiteiros que têm feito surgir nos muros de cidades russas mensagens antiguerra. Também em 27 de março, dois homens foram presos na cidade de Tula, no sul do país, acusados de grafitar mensagens como “Derrubem Putin” e “Parem Putin”.

A jornalista russa Marina Ovsyannikova, por sua vez, ficou conhecida mundialmente por interromper um noticiário na TV estatal russa Canal 1 (Piervy Kanal) para protestar contra a invasão da Ucrânia. No dia 14 de março, ela se postou repentinamente atrás da apresentadora de um telejornal com um cartaz escrito em russo e inglês que dizia “Não à guerra, não acredite na propaganda. Eles estão mentindo para você”. Ela ficou no ar durante vários segundos até que o canal a tirasse de cena.

No dia seguinte ao protesto, a Justiça russa condenou a jornalista a pagar também uma multa de 30 mil rublos (cerca de R$ 1,69 mil), justificando de se tratar de uma “tentativa de organizar um protesto não autorizado”. Ovsyannikova diz que pediu demissão e que não pretende sair do país, alegando ter recusado uma oferta de asilo da França. Em abril, ela foi contratada como correspondente freelancer do jornal alemão Die Welt.

Coletivamente, um jeito diferente de protestar tem sido através de mensagens escritas em cédulas e moedas de rublos. O fenômeno passou a ser compartilhado em plataformas como Twitter, Telegram e Reddit. As mensagens são normalmente escritas à mão, sendo as frases mais comuns “não à guerra” e “russos contra a guerra”.

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