Brasil se distanciou dos EUA, flertou com regimes autoritários e viu o terrorismo de perto em 2023

Navios do Irã no Rio, veto a resolução contra a Nicarágua e recusa em vender ambulâncias a Kiev marcaram diplomacia brasileira

Navios iranianos ancorados no Rio de Janeiro. Apoio negado à Ucrânia na guerra contra a Rússia. Recusa em condenar abusos do governo autoritário da Nicarágua. Supostos extremistas ligados ao Hezbollah presos em território brasileiro. Com as cortinas se fechando em 2023, A Referência relembra momentos marcantes tanto para a diplomacia quanto para a segurança do Brasil, que neste ano flertou com regimes autoritários, se distanciou de aliados tradicionais e viu a ameaça terrorista mais de perto.

O ano de 2023 já começou com uma turbulência diplomática, após o governo brasileiro autorizar, no dia 13 de janeiro, a ancoragem de dois navios da frota iraniana no porto do Rio de Janeiro. Washington, em meio à crescente tensão com Teerã, avaliou a situação como uma “provocação” iraniana, e a repercussão foi negativa também entre ativistas de direitos humanos que monitoravam o caos social no país árabe após a morte de Mahsa Amini em setembro de 2022.

Para uma ONG que promove os direitos humanos na República Islâmica, o aval de Brasília foi como um “tapa na cara” dos iranianos que protestavam contra o regime do presidente Ebrahim Raisi.

Hadi Ghaemi, diretor-executivo do Center For Human Rights in Iran (CHRI), uma organização independente sediada em Nova York, conversou com A Referência à época e expôs o ponto de vista da entidade a respeito da posição do Brasil.

“Os iranianos estão lutando contra um regime brutal que matou, cegou, estuprou e mutilou milhares deles, além de aprisionar dezenas de milhares. Portanto, a política externa brasileira deve reconhecer a realidade deste momento trágico e compreender a dor da nação iraniana”, afirmou Ghaemi.

Presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e do Irã, Ebrahim Raisi, agosto de 2023 (Foto: Palácio do Planalto/Flickr)

O episódio dos navios também não passou em branco por Washington, de onde o senador republicano Ted Cruz criticou o governo brasileiro. “O atracamento de navios de guerra iranianos no Brasil é uma evolução perigosa e uma ameaça direta à segurança dos americanos”, disse o parlamentar através de suas redes sociais.

A polêmica não se dissolveu com o passar do tempo, e um artigo publicado em novembro pela revista indiana The Week retomou o debate. Desta vez, porém, de forma mais ampla, destacando “uma invasão iraniana maior, mas silenciosa”, que segundo o texto estaria “se desenrolando em toda a América Latina.”

“Após anos de sanções e isolamento dos EUA, o Irã está agora reconstruindo com determinação seus laços políticos e econômicos em toda a região. Os seus agentes estão lançando as bases para uma maior influência estratégica nas portas dos Estados Unidos”, diz o texto assinado pelo jornalista Milan Sime Martinic, que coloca o Brasil como epicentro dessa invasão.

Mais tarde, a relação entre Brasília e Teerã deu outro passo adiante com a admissão do Irã no BRICS, aprovada pelo Brasil e pelos demais membros do bloco, RússiaÍndiaChina e África do Sul.

Segundo o analista político Shahir Shahidsaless, que se manifestou em artigo para o think tank Stimson, a entrada do Irã no BRICS foi uma vitória e tanto de Teerã, que assim ganha legitimidade internacional em meio aos frequentes reveses diplomáticos que vinha sofrendo.

Se a aceitação do Irã abalou a imagem do Brasil junto aos EUA, a reação foi mais descentralizada quando o país, em março, se recusou a assinar, ao lado de mais 50 nações, uma declaração conjunta denunciando os abusos de direitos humanos do regime autoritário do presidente Daniel Ortega na Nicarágua.

A posição brasileira foi amplamente criticada, e o governo tentou limpar a própria imagem se oferecendo para receber um grupo de mais de 300 opositores de Ortega que perderam a nacionalidade e se tornaram apátridas. O Brasil também usou a tribuna da ONU (Organização das Nações Unidas) para se posicionar contra o regime alguns dias depois, consciente de que a negativa em assinar o documento pegou mal junto á opinião pública.

Tovar Nunes, embaixador brasileiro nas Nações Unidas, apresentou uma declaração unilateral na qual o país manifestou preocupação com as “alegações de graves violações de direitos humanos e com as restrições ao espaço democrático” na Nicarágua, “em particular execuções sumárias, detenções arbitrárias e tortura contra dissidentes políticos.”

Entretanto, uma fonte ouvida na ocasião pela agência Reuters, que não teve a identidade revelada, disse que a manifestação brasileira na ONU não foi incisiva contra a Nicarágua. “O documento expressa preocupação, mas não atira pedras, justamente para deixar aberta a possibilidade de diálogo”, declarou a fonte.

Brasil, China e Rússia: aliados?

Se os casos dos navios navios iranianos e da declaração contra a Nicarágua não foram bem recebidos no Ocidente, certamente caíram bem entre os parceiros brasileiros no BRICS China e Rússia, que ao longo do ano fortaleceram seus laços tanto com Teerã quanto com Manágua.

Como no episódio da Nicarágua, a questão dos direitos humanos entrou em debate mais uma vez em maio, quando foi revelada a participação do Brasil em uma visita organizada por Beijing à região de Xinjiang, onde o governo chinês é acusado de uma série de abusos contra a minoria étnica dos uigures, o que para algumas nações ocidentais configura genocídio.

Representantes das missões diplomáticas de ao menos 12 países visitaram Xinjiang na companhia de Ma Xingrui, secretário do Partido Comunista Chinês (PCC) na região. O evento foi de 24 a 28 de abril e contou com representantes de Brasil, Mianmar, Nepal, Vietnã, Camboja, Indonésia, Uganda, Paquistão, Equador, Irã, Senegal e Turquia.

Ma teria aproveitado o encontro para convocar as nações ali representadas a levantarem “suas vozes justas” contra as acusações. “Algumas forças anti-China nos países ocidentais, lideradas pelos EUA, estão destruindo o progresso dos direitos humanos em Xinjiang, espalhando inúmeras notícias falsas anti-China e difamando a imagem da China”, teria dito ele no discurso de boas-vindas.

Frederico Meyer, cônsul-geral do Brasil em Cantão, confirmou à reportagem de A Referência, por e-mail, que “o Foreign Affairs Office de Guangdong convidou membros do corpo consular de Guangzhou, Chengdu e Chongqing para visitar Kashgar e Urumqi. A visita teve sobretudo caráter turístico.”

A presença brasileira, porém, não caiu bem junto a grupos humanitários. Para a Anistia Internacional, que há mais de 60 anos defende causas ligadas aos direitos humanos, as alegações feitas pela China aos convidados são incabíveis.

“As violações dos direitos humanos perpetradas pelo governo chinês contra uigures, cazaques e outras comunidades muçulmanas estão longe de serem ‘notícias falsas’. Em vez disso, elas foram bem documentadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), entre muitos outros”, disse Alkan Akad, pesquisador da ONG na China, que falou com A Referência por e-mail.

Como a China, a Rússia também teve motivos para celebrar determinadas decisões do governo brasileiro. Entre elas o veto do Departamento de Assuntos Estratégicos, de Defesa e de Desarmamento do Itamaraty à venda para a Ucrânia de 450 veículos blindados Guarani modelo ambulância, que segundo Kiev seriam usados em operações humanitárias, como resgate de civis e soldados feridos, na guerra com Moscou.

O presidente Lula chegou a se manifestar sobre o pedido de venda dos Guaranis. Em pronunciamento durante visita ao Brasil do primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, o chefe de Estado brasileiro classificou a informação como “fake news”, dizendo que não havia tomado conhecimento de nenhuma solicitação do gênero.

Rutte, então, pediu a palavra e destacou a importância de o Brasil se posicionar com mais firmeza quanto à guerra, sendo assim reinserido na cena mundial. E sugeriu que a União Europeia (UE) sabia do pedido de Kiev. “Então, temos que tomar decisões, e eu gostaria de assegurar que o presidente sempre receba atualizações daquilo que nós temos conhecimento”, disse o premiê dirigindo-se a Lula.

Extremistas presos no Brasil

Se a diplomacia brasileira caminhou a quilômetros de distância de Washington e seus aliados, no campo de segurança a cooperação com eles foi crucial. Em novembro, a Polícia Federal (PF) brasileira anunciou a prisão de indivíduos acusados de servir ao Hezbollah acusados de tentar recrutar seguidores e de preparar ataques terroristas em território brasileiro. A operação só foi possível graças a informações fornecidas por agências de inteligência dos EUA e de Israel.

O episódio trouxe à tona um problema que por vezes passa despercebido: a atividade de organizações extremistas islâmicas no país. Na oportunidade, especialistas ouvidos pela reportagem de A Referência alertaram que o interesse desses grupos pelo Brasil aumentou nos últimos anos. E que novas medidas de combate ao terrorismo são urgentemente necessárias.

Embora o terrorismo islâmico já tenha dado as caras sob sua faceta mais violenta em um país vizinho, no ataque do próprio Hezbollah que matou 85 pessoas na Argentina em 1994, jamais ouve um ataque no Brasil. Segundo Barbara Krysttal, gestora de políticas públicas e analista de inteligência antiterrorismo, essa possibilidade agora é real.

“O Brasil, nos últimos anos, tem sido mais vezes cogitado como possível alvo para ataques terroristas”, disse ela, destacando ainda o maior interesse das organizações extremistas no recrutamento de seguidores, questão igualmente citada pela PF quando realizou as detenções de novembro.

Na opinião de Rubens Beçak, professor da FDRP-USP, livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e professor visitante da Universidade de Salamanca, na Espanha, no curso Master em Estudos Brasileiros, o Brasil não pode ser dar ao luxo de dispensar o apoio ocidental no setor de segurança.

“Nós estamos falando da soberania brasileira, mas os serviços de inteligência estrangeiros nos ajudam, na medida em que chegamos a uma resposta a essa tentativa terrorista de uma maneira muito mais eficiente e eficaz”, disse ele. “As informações que podem ter sido trazidas pela inteligência israelense são bem-vindas, principalmente, pela larga tradição que o país tem em investigações de contraterrorismo.”

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