Beijing pressiona refugiados uigures na Turquia para que espionem uns aos outros

Exilados são coagidos a acompanhar todos os passos de outros membros da comunidade e reportá-los ao governo chinês

A repressão imposta pelo governo da China à minoria étnica dos uigures não se limita à região de Xinjiang, de onde o grupo é originário. Ela atravessa as fronteiras nacionais e atinge a diáspora ugir em diversos lugares do mundo. Na Turquia, uma estratégia adotada por Beijing tem sido pressionar os refugiados a espionar uns aos outros, como mostra reportagem da rede Radio Free Asia (RFA).

A Turquia se tornou um destino preferencial dos uigures nos anos 1950, e atualmente existem cerca de 50 mil representantes da etnia no país. Eles são beneficiados por um programa de Ancara de apoio a grupos étnicos, culturais e linguísticos com raízes turcas, o que não basta para garantir-lhes liberdade e privacidade plenas. Beijing consegue driblar a proteção estatal e assim mantém seus tentáculos sobre a minoria mesmo em território turco.

Segundo Maya Wang, diretora associada da divisão asiática da ONG Human Rights Watch (HRW), o governo chinês considera necessário manter os exilados sob observação inclusive quando vivem no exterior.

“O objetivo é aumentar o controle, a vigilância e a repressão de todos que fazem parte dessa comunidade, gerando uma sensação de medo e, portanto, obediência e lealdade ao governo chinês, mesmo quando você está a milhares de quilômetros de Beijing”, disse ela.

Manifestantes se posicionam contra a opressão do povo uigur pelas mãos do governo chinês na Austrália em março de 2022 (Foto: Matt Hrkac/Flickr)

De acordo com uigures que deixaram a China, as redes sociais são uma importante ferramenta de monitoramento dos exilados. Sobretudo o WeChat e o TikTok, este chamado de Douyin no país asiático. Usadas pelos dissidentes para manter contato com os familiares que ainda vivem na China, essas mídias tornaram-se veículos das ameaças feitas de Beijing.

Os agentes estatais chineses, entretanto, não agem diretamente para pressionar os uigures. Em vez disso, intimidam membros mais frágeis do grupo para que espionem os outros. Há casos até de pessoas que recebem dinheiro para espionar. Uma autoridade chinesa teria oferecido a um uigur que vive na Turquia US$ 27 (R$ 140) por cada informação reportada. Além de rejeitar a proposta, o indivíduo teria gravado a conversa que teve com o policial pelo WeChat.

Além de obter as informações que deseja, a rede de “espiões” acaba por disseminar a desconfiança entre a comunidade. “Os uigures podem vir a suspeitar uns dos outros, e essa erosão da confiança afeta a comunidade e desgasta seu tecido social”, afirmou Natalie Hall, da Sociedade Oxus para Assuntos da Ásia Central. 

Yasinjan, um uigur que vive na Turquia desde 2016 e administra uma barbearia em Istambul, conta ter sido assediado por autoridades de Xinjiang que queriam saber toda a rotina dele. Ele ignorou os contatos diretos, não atendeu parentes coagidos por Beijing a fazer contato e não atendeu às demandas mesmo quando o sogro foi preso na China. Então, outro uigur na cidade turca foi enviado para espioná-lo.

O “espião”, um jovem que chegou à barbearia como suposto cliente, tinha como missão gravar as conversas que teria com Yasinjan. “Percebi que algo estava errado, então liguei para ele e disse que era a vez dele (ser atendido)”, disse o homem. “Quando ele entrou na barbearia, confessou tudo”. 

Um relatório feito em 2021 pelo Projeto de Direitos Humanos Uigur, uma entidade norte-americana, e a Sociedade Oxus documentaram 5.530 casos de advertências, ameaças e pedidos de prisão direcionados a uigures no exterior, em 22 países diferentes, ao longo de 19 anos.

A reação de Ancara

Embora o governo turco trate com severidade os casos de espionagem, as ações em tela não incluem a obtenção de segredos de Estado. Soma-se a isso o fato de que Ancara tem investimentos relevantes na China, e a situações dos uigures é quase ignorada pelo governo turco.

A exceção são os casos de pedidos de extradição feitos pelo governo chinês, que a Turquia promete não atender. “Eles têm pedidos de extradição para pessoas que são nossos cidadãos, que vivem na Turquia o tempo todo, e não concedemos nenhum deles”, disse Mevlut Cavusoglu, ministro das Relações Exteriores da Turquia, em dezembro de 2022.

Rejeitando as alegações de que os uigures turcos estão sendo extraditados para a China, Cavusoglu resumiu o que pensa sobre tais declarações: “uma mentira total”. Segundo ele, um tratado de extradição anunciado por Beijing no fim do ano passado não mudará isso, pois o parlamento turco não ratificou formalmente o acordo.

“Nossa defesa dos direitos dos uigures turcos na arena internacional perturba a China. Mas esta é uma questão humanitária”, disse ele, citando um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os uigures turcos na China divulgado em setembro.

Por que isso importa?

A comunidade uigur é uma minoria muçulmana de raízes turcas que habita a região autônoma de Xinjiang, no noroeste da China. A província faz fronteira com países da Ásia Central, com quem divide raízes étnicas e linguísticas.

Os uigures, cerca de 11 milhões, enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% dos chineses. Denúncias dão conta de que Beijing usa de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa em Xinjiang.

Estimativas apontam que um em cada 20 uigures ou cidadãos de minoria étnica já passou por campos de detenção de forma arbitrária desde 2014.

O governo de Joe Biden, nos EUA, foi o primeiro a usar o termo “genocídio” para descrever as ações da China em relação aos uigures. Em seguida, Reino Unido e Canadá também passaram a usar a designação, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.

A China nega as acusações de que comete abusos em Xinjiang e diz que as ações do governo na região têm como finalidade a educação contraterrorismo, a fim de conter movimentos separatistas e combater grupos extremistas religiosos que eventualmente venham a planejar ataques terroristas no país.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China Zhao Lijian afirma que o trabalho forçado uigur é “a maior mentira do século”. “Os Estados Unidos tanto criam mentiras quanto tomam ações flagrantes com base em suas mentiras para violar as regras do comércio internacional e os princípios da economia de mercado”, disse ele.

Tags: