China usa reconhecimento facial para perseguir dissidentes norte-coreanos

Sistema de vigilância estatal é usado para identificar indivíduos que passam pelo território chinês fugindo da Coreia do Norte

O governo da China tem usado seu sistema de reconhecimento facial, parte importante da repressão estatal no país, para identificar e prender cidadãos que fogem da vizinha Coreia do Norte pela fronteira norte e transitam pelo território chinês. A denúncia foi feita pela rede Radio Free Asia (RFA).

Beijing tem um banco de dados no qual armazena os dados faciais de praticamente todos os cidadãos do país. Então, quando as câmeras de vigilância das cidades próximas à fronteira norte-coreana identificam um indivíduo que não consta no sistema, imediatamente notifica as autoridades, que passam a investigar.

Seo Jae-pyoung, chefe da Associação dos Desertores Norte-Coreanos, um grupo de apoio com sede na Coreia do Sul, diz que não é possível determinar se algum dissidente de fato foi preso e devolvido ao país de origem graças ao reconhecimento facial. Inclusive porque Beijing não divulga dados sobre detenções e extradições para Pyongyang. Mas a nova tecnologia, conjugada com o uso de inteligência artificial (IA), criou problemas adicionais para os que tentam deixar a Coreia do Norte.

Segundo Seo, um dos efeitos do uso da tecnologia nas cidades chinesas fronteiriças é o aumento dos valores exigidos pelas quadrilhas de contrabandistas de pessoas, que passaram a cobrar mais caro devido ao risco ampliado também para os criminosos.

Kim Sung-eun, que integra a ONG Missão Caleb, igualmente focada em dar suporte a norte-coreanos que deixam o país, disse que um contrabandista costumava cobrar cerca de US$ 2 mil por refugiado que quisesse ir à China. Atualmente, a travessia custa entre US$ 10 mil e US$ 15 mil.

Tecnologia de reconhecimento facial é parte da repressão estatal na China (Foto: Steve Rhodes/Flickr)

Para os dissidentes, a ameaça também é notadamente maior. Agora, com câmeras espalhadas por todos os lados, é praticamente impossível fazer uma viagem discreta desde a Coreia do Norte até o sul da China, de onde é possível voar rumo à Coreia do Sul. O perigo é consideravelmente mais alto no transporte público chinês.

Seo cita um episódio recente, de março deste ano, quando seis norte-coreanos foram detidos pela polícia da China na cidade de Dalian, no nordeste do país. “Parece que aqueles fugitivos norte-coreanos já foram rastreados”, disse Seo. “É muito provável que eles tenham sido pegos porque desconheciam os perigos da tecnologia de reconhecimento facial e rastreamento.”

Kim Sung-eun diz que a tecnologia tem sido usada desde antes da pandemia de Covid-19. Justifica o argumento com base no caso de funcionários da Missão Caleb presos na China em 2019. “Há uma máquina de reconhecimento facial em frente à estação de trem. Eles passaram e sentaram no trem e foram pegos imediatamente”.

Estatísticas

Para os analistas, o uso de reconhecimento facial ajuda a explicar a queda no número de norte-coreanos que chegam ao Sul. Entre 2001 e 2019, mais de mil pessoas fugiram do regime de Pyongang rumo a Seul a cada ano, com um pico de 2.914 em 2009. Esse número caiu para 229 em 2020, puxado para baixo pela pandemia, e não chegou a cem pessoas por ano em 2021 e 2022, segundo o Ministério da Unificação da Coreia do Sul.

Recentemente, em 13 de junho, Ethan Hee-Seok Shin, analista jurídico da ONG Grupo de Trabalho de Justiça de Transição, com sede na Coreia do Sul, prestou depoimento ao Congresso dos EUA. Ele atrelou a redução no número de norte-coreanos em fuga à vigilância estatal de Beijing.

“O programa de reconhecimento facial baseado em IA tornou quase impossível o movimento interno dos refugiados norte-coreanos por transporte público na China, enquanto as autoridades usam tecnologia de vigilância para monitorar e interceptar os fugitivos que tentam sair da China”, afirmou ele.

Hanna Song, diretora de cooperação internacional da ONG Banco de Dados para Direitos Humanos da Coreia do Norte, sediada em Seul, deu depoimento semelhante ao Congresso. Ela contou que ouviu de dissidentes o quanto as novas tecnologias, incluída aí a biometria, têm dificultado a missão de quem foge do regime ditatorial de Kim Jong-un.

“O uso crescente de tecnologia emergente pela China está sendo usado como uma ferramenta de repressão que afeta os grupos mais vulneráveis, incluindo os refugiados norte-coreanos”, disse ela.

Questão de direitos humanos

A tecnologia de reconhecimento facial virou arma de regimes repressivos, como o chinês, para controlar a população e punir opositores. Tornou-se, dessa forma, protagonista no debate global sobre direitos humanos.

Em agosto de 2021, um grupo de relatores independentes da ONU (Organização das Nações Unidas) instou os governos do mundo a estabelecerem uma moratória global na venda e na transferência de tecnologia de vigilância. Eles sugeriram a medida até que houvesse garantias de que o setor cumpre com padrões internacionais de respeito aos direitos humanos.  

Os relatores afirmaram na ocasião que é “perigoso e irresponsável” permitir que este tipo de tecnologia opere em “zonas sem direitos humanos”. A preocupação está ligada ao uso de equipamentos altamente sofisticados para “monitorar, intimidar e silenciar defensores de direitos humanos, jornalistas e opositores políticos”. 

Episódios recentes

A China, por exemplo, já teria implantado um sistema de vigilância governamental na Sérvia por meio da gigante de tecnologia Huawei, aproveitando a boa relação do governo com Beijing. A parceria, denunciada em agosto de 2021, aumenta a desconfiança, pois essa tecnologia constitui um dos pilares do sistema de controle social do Partido Comunista Chinês (PCC).

O governo da Uganda, na África Oriental, também foi acusado em 2020 de usar a tecnologia para identificar e perseguir dissidentes após uma onda de protestos antigovernamentais.

Na Rússia, o reconhecimento facial foi usado para  identificar e deter cidadãos que tentam driblar o recrutamento obrigatório para servir às forças armadas do país na guerra da Ucrânia. A tecnologia também ajudou Moscou a deter dezenas de pessoas consideradas suspeitas de preparar protestos no Dia da Rússia, importante feriado nacional que marca a declaração de soberania de 1990.

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