Em reuniões secretas, Igreja Católica alertou para o aumento da repressão em Hong Kong

Representante do Vaticano fez uma série de reuniões secretas e pediu que missões, documentos e dinheiro fossem protegidos

Durante quatro reuniões realizadas a partir de outubro de 2021, o monsenhor Javier Herrera-Corona, então representante não oficial do Vaticano em Hong Kong, alertou as 50 missões católicas no território de que a liberdade da qual desfrutaram por muitos anos tinha acabado. Segundo ele, a China vinha endurecendo a repressão, inclusive religiosa, e era necessário proteger as missões, os documentos e o dinheiro da Igreja Católica. A revelação foi feita pela agência Reuters com base em depoimentos de quatro pessoas com conhecimento do ocorrido.

Os encontros vinham sido mantidos em sigilo pela Igreja. Eles se tornaram necessários sobretudo depois que Beijing impôs a lei de segurança nacional, que deu ao governo de Hong Kong poder legal para silenciar a oposição e encarcerar os críticos. A normativa classifica e criminaliza qualquer tentativa de “intervir” nos assuntos locais como “subversão, secessão, terrorismo e conluio”. Infrações graves podem levar à prisão perpétua.

“A mudança está chegando, e é melhor você estar preparado”, teria falado o mexicano aos missionários, segundo uma testemunha que diz ter catalogado as mensagens. “Hong Kong não é a grande praia católica que era”.

Segundo o religioso, que deixou Hong Kong em março de 2022, a lei de segurança nacional não era a única preocupação do Vaticano. Ele disse que o plano do Partido Comunista Chinês (PCC) é aumentar gradativamente a integração entre a China continental e Hong Kong, impondo no território autogovernado um sistema de restrições semelhante ao do continente.

Papa Francisco na 70ª Assembleia Geral da ONU em setembro de 2015 (Foto: UN Photo/Kim Haughton)

A Lei Básica de Hong Kong, que orienta a relação do território com a China continental desde que deixou o domínio britânico, em 1997, garante a liberdade religiosa. No entanto, Herrera-Corona avisou às missões que não mais deveriam contar com a proteção legal, devido à crescente pressão de Beijing.

Quando os avisos foram dados, três clérigos católicos dizem que a Igreja já estava sob a vigilância estatal chinesa. Daí a orientação para que documentos fossem protegidos. Assim, mais de meia tonelada de arquivos sobre as atividades do Vaticano em Hong Kong foram enviados secretamente a Roma, usando inclusive missões diplomáticas para mover o material sem o conhecimento de Beijing. O conteúdo incluía dados sobre a atuação de religiosos clandestinos e detalhes sobre perseguição religiosa.

Um dos temores do monsenhor, como ficou claro nos encontros, era a segurança de algumas figuras da Igreja Católica fortemente ligadas ao movimento pró-democracia. Caso do cardeal Joseph Zen, preso pela polícia de Hong Kong em maio deste ano. A acusação está relacionada à atuação dele no agora extinto grupo 612 Humanitarian Relief Fund (Fundo de Auxílio Humanitário 612, em tradução literal), que prestava apoio jurídico, psicológico e financeiro a pessoas presas ou feridas nos protestos de 2019.

Conclave virtual

Um evento paralelo ocorrido na época do primeiro daqueles quatro encontros ilustra a preocupação do Vaticano. Também em outubro do ano passado, missões, bispos e outros líderes religiosos da China realizaram um conclave virtual com clérigos católicos de Hong Kong. O objetivo: instruir a Igreja sobre os conceitos de religião “com características chinesas”, expressão frequentemente usada para enquadrar ideias diversas no pensamento do presidente Xi Jinping.

De acordo com líderes religiosos que participaram do conclave virtual ou tiveram acesso a informações sobre ele, trata-se da ação mais incisiva até hoje de Beijing para influenciar o catolicismo de Hong Kong, que se reporta diretamente ao Vaticano.

O nome do presidente não foi citado no encontro, mas ficou clara a meta de aproximar a religião dos conceitos de patriotismo estabelecidos por ele e inseri-la na cultura chinesa, alinhando a visão da Igreja aos objetivos do PCC. Um processo de “sinicização” do catolicismo.

O cardeal católico Joseph Zen, de Hong Kong, preso em maio de 2022 (Foto: Wikimedia Commons)
“Sinicização” da fé

Desde 2012, quando Xi Jinping assumiu o governo, a repressão religiosa na China se intensificou. As restrições tornaram-se ainda mais rígidas em 2018, quando entrou em vigor a atual regulamentação de assuntos religiosos no país. Somada à repressão imposta em outros setores, como meios de comunicação e internet, a prática religiosa tornou-se um desafio para os fieis em território chinês.

No início de dezembro de 2021, no Encontro Nacional Sobre Assuntos Religiosos do PCC, Xi havia deixado clara a intenção de colocar a religião sob o guarda-chuva da sigla. “Devemos manter o trabalho religiosos na direção essencial do partido. Devemos continuar a direcionar nosso país para a sinicização da religião. Devemos continuar a pegar o grande número de crentes religiosos e uni-los em torno do partido e do governo”, disse o líder nacional no evento.

Num dos capítulos mais recentes da repressão religiosa, começou a vigorar em março deste ano na China continental a regulamentação da propaganda religiosa online. De acordo com as regras, é preciso obter uma licença para divulgar conteúdo religioso na internet, e somente entidades ou indivíduos sediado na China e reconhecidos pelas leis chinesas têm esse direito.

De acordo com o pastor Liu Yi, devido à pandemia, muitas religiões a fortaleceram sua atuação online, o que levou Beijing a treinar os novos censores para fiscalizar o ambiente virtual. “Qualquer um pode postar nas redes sociais, então é por isso que o governo precisa dessas pessoas, para supervisionar isso”, disse o religioso. “Querem que eles monitorem e relatem qualquer atividade religiosa online”.

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