Muçulmanos denunciam ‘genocídio cultural e religioso’ e desafiam a repressão na China

Manifestação levou uma multidão de pessoas da etnia hui às ruas para tentar impedir a demolição parcial de uma mesquita

Uma multidão composta essencialmente por muçulmanos da etnia hui protagonizou um cena rara na China no último final de semana. Eles desafiaram a autoridade do governo central e foram às ruas da cidade de Yuxi, na província chinesa de Yunan, protestar contra a repressão religiosa no país e contra o que classificam como “genocídio cultural e religioso”. As informações são da rede CNN.

O protesto ocorreu no sábado (27) e acrescentou um capítulo tenso ao grande processo de sinicização da fé estabelecido pelo presidente Xi Jinping, cujo objetivo é sujeitar as religiões ao nacionalismo chinês e aos ideais do Partido Comunista Chinês (PCC).

Parte dessa iniciativa prevê a reformulação da fachada das mesquitas do país, com a remoção dos vestígios da língua árabe e das influências arquitetônicas mais evidentes da cultura do Oriente Médio. Os muçulmanos não têm recebido nada bem essa imposição.

Mesquita de Dongguan, na cidade de Xining, 2014: arquitetura proibida (Foto: Wikimedia Commons)

A mesquita de Najiaying, em Nagu, está entre os alvos do governo, o que levou os fieis às ruas. Vários vídeos publicados na internet mostram o que seriam muçulmanos desafiando a polícia chinesa para protestar. A CNN verificou a geolocalização dos vídeos e confirmou que foram gravados na província de Yunan, importante centro da cultura islâmica na China.

Cerca de mil policiais foram enviados para conter os manifestantes, que tentaram entrar no templo para as orações do meio-dia. Foi o momento mais tenso do protesto, com relatos de agressões por parte das autoridades e um consequente confronto com a multidão.

Os manifestantes conquistaram uma vitória temporária, impedindo que os guindastes posicionados em frente à mesquita iniciassem a demolição. A partir de domingo (28), porém, veio a dura resposta de Beijing, com a prisão de muitos dos envolvidos. As autoridades também emitiram um comunicado no qual ofereciam perdão judicial àqueles que se entregassem e denunciassem outros colegas.

Episódio semelhante havia ocorrido em 2018, no início do processo de reforma obrigatória dos templos. Na ocasião, membros da etnia hui protestaram contra a demolição de uma mesquita em Ningxia, no noroeste da China. Lá, não demorou muito para o governo vencer a queda de braço, com a consequente retirada das cúpulas e dos minaretes, estes últimos as torres de onde são anunciados os cinco horários diários de oração. No lugar foram colocados pagodes tradicionais da arquitetura chinesa.

As autoridades chinesas alegam que as cúpulas evidenciam a influência religiosa estrangeira e, dessa forma, vão contra os ideais nacionalistas do PCC. Assim, a arquitetura abertamente islâmica tem sido derrubada, a fim de remover a identidade visual e dar aos edifícios uma arquitetura tipicamente chinesa, processo que ocorre sobretudo no noroeste do país.

Novo alvo do governo

Os hui falam sobretudo mandarim e convivem em harmonia com a etnia majoritária han, diferente do que ocorre com outras minorias chinesas. Eles costumavam gozar de maior liberdade religiosa no país, mas esse cenário vem mudando. Ultimamente, os hui têm se tornado um dos alvos preferenciais das forças de segurança, o que leva alguns deles a traçar um paralelo com a situação dos uigures de Xinjiang.

Ativistas alegam que a perseguição aos hui não se resume às mudanças obrigatórias nas fachadas dos templos. Eles relatam casos de escolas islâmicas fechadas e de proibições impostas às aulas de língua árabe e de princípios do Islamismo.

Genocídio

Um relatório feito por entidades de defesa dos direitos humanos em fevereiro afirma que o processo de sinicização da fé na China “teve o efeito de expurgar as comunidades de suas conexões com a cultura hui, religião e entre si tão completamente que alguns líderes veem o apagamento de uma identidade hui significativa dentro de outra geração como uma possibilidade provável.”

O documento, que foi encaminhado à ONU (Organização das Nações Unidas), afirma que, no caso de Ningxia, “as autoridades visitaram cada família hui na comunidade, exigindo que cada um desse consentimento para a substituição da cúpula, fazendo ameaças como perda de emprego para familiares que fossem funcionários públicos.” 

De acordo com Ma Ju, ativista e fundador da ONG Hope Umbrella International Foundation, a sinicização da fé é na verdade um grande mecanismo de “genocídio cultural e religioso”, cujo desfecho pode ser projetado com base no que ocorreu em Xinjiang.

Muçulmanos protestam contra a repressão religiosa na província de Yunan (Foto: reprodução de vídeo)
Por que isso importa?

Nos últimos anos, Beijing tem intensificado o controle sobre a religião no país, parte de um processo de sinicização da fé. No início de dezembro de 2021, no Encontro Nacional Sobre Assuntos Religiosos do PCC, Xi Jinping deixou clara a intenção de colocar a religião sob o guarda-chuva da sigla.

“Devemos manter o trabalho religiosos na direção essencial do partido. Devemos continuar a direcionar nosso país para a sinicização da religião. Devemos continuar a pegar o grande número de crentes religiosos e uni-los em torno do partido e do governo”, disse o líder nacional no evento.

O principal expoente do desafio que os fieis enfrentam na China é a etnia muçulmana dos uigures, que habitam a região autônoma de Xinjiang, no noroeste do país, fazendo fronteira com nações da Ásia Central, com quem divide raízes étnicas e linguísticas.

Os uigures, cerca de 11 milhões, enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% dos chineses. Denúncias dão conta de que Beijing usa de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa em Xinjiang.

Estimativas apontam que um em cada 20 uigures ou cidadãos de minoria étnica já passou por campos de detenção de forma arbitrária desde 2014.

O governo de Joe Biden, nos EUA, foi o primeiro a usar o termo “genocídio” para descrever as ações da China em relação aos uigures. Em seguida, Reino Unido e Canadá também adotaram a designação, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.

Em agosto de 2022, a ONU (Organização das Nações Unidas) divulgou um aguardado relatório que fala em “graves violações dos direitos humanos” cometidas em Xinjiang. O documento destaca “padrões de tortura ou maus-tratos, incluindo tratamento médico forçado e condições adversas de detenção”, bem como “alegações de incidentes individuais de violência sexual e de gênero”.

O governo chinês refuta as acusações e classifica como “campos de reeducação” as áreas onde vivem milhões de uigures. O argumento para isolar e vigiar a etnia muçulmana é o da “segurança nacional”, sob a justificativa de evitar a radicalização dos fiéis.

Zhao Lijian, ex-porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, chegou a afirmar que o trabalho forçado uigur é “a maior mentira do século”.

Ele condenou as sanções econômicas impostas pelo governo norte-americano a empresas de todo o mundo que usem produtos ou matérias-primas provenientes de Xinjiang. “Os Estados Unidos tanto criam mentiras quanto tomam ações flagrantes com base em suas mentiras para violar as regras do comércio internacional e os princípios da economia de mercado”, disse ele.

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