Repressão em Hong Kong cada vez mais lembra a da China, e até segurar flores pode gerar prisão

Governo não respeita promessa feita quando deixou o domínio britânico e decreta o fim das liberdades individuais no território chinês

Desde que Hong Kong passou para o domínio chinês, em 1997, vem sendo implantado no território um processo de repressão estatal cada vez mais parecido com o da China continental. As autoridades locais ampliaram a vigilância sobre os cidadãos, com manifestações pacíficas proibidas e pessoas detidas por gestos banais, como segurar flores. É o que mostra reportagem da rede Voice of America (VOA).

Um episódio que viralizou recentemente evidencia o fim das liberdades individuais em Hong Kong. Vídeo publicado no X, antigo Twitter, mostra um homem de 39 anos sendo detido preso porque segurava flores brancas. Na visão das autoridades, o gesto simboliza a morte de cultura chinesa, o suficiente para ele ser preso por desordem pública e obstrução da justiça.

“Policiais à paisana lutam contra homem em Hong Kong por protestar com uma flor no Dia Nacional da China”, diz a postagem feita pelo jornalista da rede BBC Danny Vincent, que trabalha em Hong Kong.

A ação das autoridades contra o homem, conhecido localmente como “Capitão América”, ocorreu em 1º de outubro, quando é celebrada a fundação da República Popular da China, em 1949. Em Hong Kong, porém, a data costumava ser marcada por protestos populares contra o Partido Comunista Chinês (PCC).

Hoje, porém, aquelas cenas são impensáveis. As manifestações públicas desapareceram das ruas desde a pandemia de Covid-19 e sobretudo após a onda de protestos pró-democracia de 2019.

A partir dali, a repressão ganhou uma importante ferramenta com a lei de segurança nacional, que deu ao governo poder de silenciar a oposição e encarcerar os críticos. A normativa legal classifica e criminaliza qualquer tentativa de “intervir” nos assuntos locais como “subversão, secessão, terrorismo e conluio”. Infrações graves podem levar à prisão perpétua.

Movimento dos Guarda-Chuvas, que ocorreu em Hong Kong em 2014 (Foto: Pasu Au Yeung/WikiCommons)

Apesar de operar sob um sistema mais autônomo, sob a promessa inicial de que liberdades individuais seriam respeitadas após deixar o domínio britânico há 26 anos, atualmente é difícil diferenciar Hong Kong da China no que tange ao autoritarismo.

“Mesmo que as expressões políticas sejam todas não violentas e evitem envergonhar diretamente as autoridades, o governo de Hong Kong ainda parece muito ansioso quanto a permitir que vozes dissidentes sejam ouvidas em público ou relatadas pela mídia”, disse Eric Lai, pesquisador visitante da faculdade de Direito Dickson Poon, da universidade King’s College, em Londres.

Na visão do governo do Reino Unido, a postura atual viola o acordo estabelecido quando da entrega do território à China. Havia, entre as promessas, a de preservar as eleições democráticas por ao menos 50 anos. Metade do tempo se passou, e Beijing não cumpriu sua parte no acordo. Muito pelo contrário.

“Qualquer interferência deve ser eliminada”

No ano passado, por conta do Dia Nacional da China, o presidente chinês Xi Jinping disse que a política “um país, dois sistemas” é um sucesso. “Para este tipo de bom sistema, não há razão alguma para mudá-lo. Ele deve ser mantido a longo prazo”, declarou o líder na ocasião, segundo a agência Reuters.

Xi destacou a importância da lei de segurança nacional a foi duro ao falar dos protestos de 2019 e da perspectiva de que se repetissem. “Após experimentar vento e chuva, todos podem sentir dolorosamente que Hong Kong não pode ser caótica e não deve se tornar caótica novamente. O desenvolvimento de Hong Kong não pode ser adiado novamente, e qualquer interferência deve ser eliminada”, disse.

Segundo Lai, a lei de segurança nacional está hoje acima de todas as outras normativas legais. “Além das prisões e processos judiciais contra mais de 250 pessoas ao abrigo da Lei Básica, as medidas preventivas que [as autoridades chinesas] adotaram mostram que não respeitam os direitos básicos e a liberdade dos cidadãos protegidos pela Lei Básica, que é a mini-Constituição da cidade”, declarou

Maya Wang, diretora associada para a Ásia da ONG Human Rights Watch (HRW), lamenta o fato de que “as pessoas precisam da aprovação da polícia para se manifestarem.” E destaca que, invariavelmente, em casos de eventos públicos, as autoridades simplesmente levam os manifestantes para interrogatório.

Foi mais ou menos o que ocorreu na quinta-feira da semana passada (28), quando três estudantes foram expulsos do campus da Universidade Baptista de Hong Kong por organizarem uma vigília em memória dos nove anos do Movimento dos Guarda-Chuvas, uma onda de protestos populares que durou 79 dias em 2014.

A Universidade usou o mesmo argumento do governo, de que a liberdade de expressão é respeitada, embora tenha impedido a manifestação sob a alegação de que não havia autorização prévia.

“Se estudantes ou organizações estudantis precisarem organizar atividades no campus, eles deverão se inscrever na Universidade antes dos eventos e fornecer informações precisas sobre os eventos”, disse o estabelecimento de ensino em comunicado.

Linha tênue entre certo e errado

Patrick Poon, pesquisador visitante da Universidade de Tóquio, no Japão, diz que um grande desafio para os cidadãos é entender o que é certo e o que é errado na visão do governo. “Ninguém sabe onde está a linha vermelha, por isso é difícil para as pessoas saberem até que ponto ainda podem expressar as suas vontades”, afirmou.

Segundo o especialista, a maneira mais segura de protestar em Hong Kong hoje é através da internet. E mesmo assim há limites. “Eles não podem usar seus nomes verdadeiros e precisam usar palavras muito obscuras para expressar suas opiniões”, disse, avaliando que os honcongueses têm se tornado muito criativos para driblar as barreiras impostas pelas autoridades, exatamente como na China continental.

Mas mesmo a internet pode se tornar um espaço sem liberdade. Exemplo disso é a tentativa do governo de censurar a música  Glory To Hong Kong (Glória a Hong Kong, em tradução literal), que se tornou o hino extraoficial dos protestos de 2019. O Google, redes sociais e aplicativos receberam solicitações para que a canção fosse apagada, e em alguns casos isso de fato ocorreu.

“O governo de Hong Kong tenta usar os tribunais para pressionar as principais plataformas globais da internet a participarem no seu regime de censura”, alertou Thomas Kellogg, diretor executivo do Centro de Direito Asiático da Universidade de Georgetown, em Washington, que falou à revista Fortune.

A partir do problema com a música, Chris Tang, chefe de segurança da cidade, pediu mudanças na Lei Básica para “tapar brechas” legais. Segundo ele, o objetivo é estabelecer patrulhas online com a missão de identificar mensagens e atos de resistência, mesmo que “brandos”.

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