Um ano depois, chineses veem protestos como o início de um movimento capaz de mudar o país

Manifestações contra rígida política 'Zero Covid' foram um raro momento de insurreição contra a repressão estatal na China

No final de novembro de 2022, muitos cidadãos chineses desafiaram a repressão estatal e foram às ruas protestar contra a rigidez da política “Zero Covid” de Beijing. Simbolicamente, seguraram folhas de papel em branco durante os atos, uma forma de denunciar a censura imposta pelo regime. Hoje, um ano após as manifestações, aqueles que se ergueram contra o governo relembram como os atos mudaram suas vidas e iniciaram um longo processo que, na visão deles, poderá um dia desafiar efetivamente o Partido Comunista Chinês (PCC) e mudar a China.

Desde os primeiros dias após os protestos, as autoridades colocaram na mira inúmeros indivíduos que foram às ruas, sobretudo jovens. Alguns desapareceram logo na sequência, detidos pelas forças de segurança sem que os parentes fossem sequer informados sobre o paradeiro. Outros conseguiram fugir do país e hoje, vivendo no exterior, lutam para manter a chama da insurreição acesa.

Conhecida como “Movimento do Livro Branco”, a onda de protestos tornou-se um marco, colocando-se historicamente ao lado das manifestações pró-democracia que explodiram em Hong Kong em 2019 e foram igualmente reprimidas com firmeza por Beijing.

Manifestantes erguem papeis em branco para protestar contra a censura na China (Foto: X/reprodução)

Os protestos do ano passado tiveram início após as trágicas mortes de dez pessoas em um incêndio em um apartamento na capital de Xinjiang, Urumqi. Para os manifestantes, as mortes poderiam ter sido evitadas se não fosse a aplicação draconiana da política “Zero Covid”, que teria atrasado a resposta dos bombeiros ou impedido que os moradores escapassem do prédio.

À época, o jornalista Michael J. Abramowitz, em artigo para a revista Newsweek, disse que o episódio foi apenas o estopim de uma série de acontecimentos que vinham se acumulando, tendo como pano de fundo a repressão estatal.

“O movimento de protesto é, em última análise, a manifestação da frustração do povo chinês com anos de crescentes violações do governo em suas liberdades fundamentais, que só pioraram desde o início da pandemia”, disse ele no texto. “Não há como negar que os cidadãos chineses têm muito a protestar. O PCC criou um dos governos mais repressivos do mundo.”

Embrião revolucionário

Apple, uma chinesa que vive em Londres e não participou presencialmente dos protestos, integra o grupo dissidente China Deviants (Desviantes da China, em tradução literal) e faz coro com o analista. Ela, que usa um pseudônimo por questões de segurança, organizou nesta semana um ato de resistência na capital britânica para relembrar o movimento.

“Queremos amplificar no exterior as vozes que foram censuradas na China, porque é impossível ter qualquer forma de sociedade civil na China”, disse a ativista à rede Radio Free Asia (RFA). “Queremos que todas as vozes sejam incluídas, que sejam ouvidas.”

Morar no exterior pode parecer uma garantia de segurança, mas tal noção é falsa. Chen Liangshi, também do China Deviants, relata que o governo não age apenas diretamente contra os dissidentes que vivem em outros países. Também o faz através de cidadãos chineses cooptados a agir como porta-vozes do regime, pessoas que invariavelmente usam de violência contra compatriotas que contestam o PCC.

Um caso que ilustra a questão ocorreu em junho deste ano, quando manifestantes pró-Hong Kong foram agredidos por estudantes chineses em Southampton, na costa sul do Reino Unido, durante um evento público para relembrar os protestos pró-democracia ocorridos em 2019 no território semiautônomo.

Há, ainda, uma outra metodologia repressiva frequentemente usada por Beijing. Quando não consegue chegar aos próprios manifestantes, mesmo que através da ação violenta de compatriotas pró-regime, o governo atinge eventuais familiares que tenham permanecido na China.

“É assim que o Partido Comunista Chinês suprime o movimento democrático no exterior. Eles tentam nos assustar para que não falemos ou protestemos, para que possam manter seu regime totalitário”, disse Chen. “É normal ter medo, mas não podemos deixar que esse medo nos pare, porque vai contra os nossos valores e ideias políticas. Ainda temos que nos levantar.”

Liao, outra chinesa que vive em Londres, disse à ONG Anistia Internacional que o silêncio não é uma opção. Como Apple, ela também aderiu ao movimento à distância, em um ato à frente da embaixada da China em Londres no dia 27 de novembro de 2022.

“Esta foi a primeira vez que vi tantas pessoas da comunidade chinesa no Reino Unido participando de um protesto. Os eventos de que participei antes não tinham muita gente, às vezes era só eu”, recorda. “Mas, mesmo que esteja sozinha, não vou desistir. O que sei é que, se pararmos de protestar, os desastres provocados pelo homem e os desastres humanitários irão se repetir. Espero que mais pessoas percebam isso e continuem a protestar e a trabalhar arduamente até que a liberdade e a democracia na China sejam verdadeiramente concretizadas.”

Trauma

Embora enxerguem o “Movimento do Livro Branco” como o possível embrião de algo maior, os chineses que foram às ruas também precisam conviver com a dolorosa lembrança da dura repressão aos protestos. Caso de Huang Yicheng, que relembrou os atos de 2022 em conversa com a Anistia.

“Nos meus sonhos, muitas vezes volto àquela época. Ao falar com muitas outras pessoas que foram presas por participarem nos protestos do Livro Branco, uma palavra que usam frequentemente é ‘trauma’. Não há dúvida de que eu também vivo com esse trauma”, disse ele, que deixou a China após os eventos e hoje mora na Alemanha.

Huang é outro que diz temer pela segurança de seus familiares na China, alegando que eles já foram assediados pelo governo, que censura inclusive a repressão ao não divulgar quaisquer dados a respeito das detenções feitas em função dos protestos.

“Não há como saber se mais alguém foi preso. A China é como um buraco negro de informação. Nos dias 26 e 27 de novembro de 2022, dois ônibus cheios de pessoas foram parados pela polícia e desapareceram na noite de Xangai”, relata. “Para onde essas pessoas foram? Tudo se torna um mistério.”

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