União Europeia amplia comércio com Mianmar em meio à ditadura e sofre críticas

Embora tenha ampliado as sanções para sufocar a ditadura, bloco importou 4,3 bilhões de euros em bens no ano passado

Desde que a junta militar assumiu o poder em Mianmar, com o golpe de Estado de fevereiro de 2021, os governos ocidentais recorreram a sanções e a outras estratégias para tenta sufocar o regime, acusado de abusos de direitos humanos, crimes de guerra e contra a humanidade. A União Europeia (UE) também se mobilizou nesse sentido, mas nem por isso deixou de fazer negócios com empresas do país asiático. Tal posicionamento gerou críticas ao bloco nos últimos dias, segundo reportou a rede Deutsche Welle (DW).

Em 2022, as importações de bens de Mianmar pela UE atingiram 4,3 bilhões de euros, de acordo com a Comissão Europeia. Trata-se de um aumento de 80% em relação ao ano anterior, quando as transações totalizaram 2,6 bilhões de euros. As exportações para o país asiático também aumentaram em 2022, de 300 milhões de euros para 368 milhões de euros.

Tal situação levou entidades internacionais e analistas a criticarem o bloco europeu nos últimos dias. Eles argumentam que o comércio com Mianmar ajuda a financiar a junta e ainda fortalece o discurso dos militares de que, apesar dos abusos condenados globalmente, consegue gerir economicamente o país sem maiores problemas.

Bandeira da União Europeia (Foto: Markus Spiske/Unsplash)

“Toda atividade econômica das empresas europeias traz divisas para o país”, argumentou a IndustriALL Global Union, uma federação sindical global fundada em Copenhague, na Dinamarca, e hoje com sede na Suíça. “Os consumidores da UE, ao comprarem produtos fabricados em Mianmar, estão inadvertidamente financiando o regime.”

Kristina Kironska, acadêmica especializada em Mianmar e baseada em Bratislava, na Eslováquia, diz que a UE, ao manter os negócios correndo normalmente com Mianmar, envia um sinal errado aos birmaneses que desafiam a junta e pedem democracia no país. “É um sinal de que a UE não se importa com eles”, diz ela.

Segundo Kironska, o volume de comércio com a UE é pequeno para Mianmar, apenas 7% de todas as exportações do país. No entanto, a junta aproveita esse fluxo comercial “para fins de propaganda, no intuito de normalizar seu domínio.”

Em maio, o grupo ativista Justice for Myanmar (Justiça por Mianmar, em tradução literal) já havia alertado para a receita da junta com impostos pagos por cervejarias estrangeiras. Relatório da entidade indica que empresas como a holandesa Heineken e a dinamarquesa Carlsberg tendem a alimentar o regime com o pagamento de US$ 155 milhões (R$ 755,5 milhões) em impostos anuais.

“Pagar impostos a pessoas que cometem crimes de guerra é participar diretamente desses crimes”, disse na ocasião Yadanar Maung, porta-voz do braço birmanês do Justice for Myanmar. “Portanto, as grandes empresas estrangeiras devem decidir se continuarão a participar dos crimes do conselho militar ou deixarão de pagar impostos.”

As crítica surgem na esteira de uma nova leva de sanções impostas pela UE a indivíduos e entidades associados à junta. Com o sétimo pacote de punições, o bloco atinge agora praticamente todos os ministros do governo militar, bem como a maioria das empresas associadas a ele.

Porém, tais medidas não satisfazem os opositores. “Congratulamo-nos com as sanções direcionadas da UE, mas é necessário agir cada vez mais”, disse Linn Thant, enviado à República Tcheca do Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês), grupo que estabeleceu um regime paralelo para enfrentar a ditadura.

Em defesa do comércio, Ranieri Sabatucci, embaixador da UE em Mianmar, argumenta que tais negócios ajudam a manter o emprego de milhares de cidadãos. Segundo ele, cerca de 700 mil pessoas dependem de empregos na indústria de vestuário do país, cujo foco é a exportação. Quase 370 mil desses empregos dependem do comércio com empresas da UE.

“Portanto, há várias centenas de milhares de famílias, principalmente rurais, que dependem dessa renda, meio milhão de crianças”, disse Sabatucci. “Considere as implicações se esses meios de subsistência desaparecerem. O esforço da UE é manter e proteger esses empregos.”

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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