Durou cerca de um dia e meio o motim do Wagner Group na Rússia, encerrado no sábado (24) quando o líder da organização paramilitar privada, Evgeny Prigozhin, ordenou aos mercenários que interrompessem a marcha rumo a Moscou e na sequência anunciou que deixaria o país. O episódio, esboço de um fracassado golpe de Estado, marca o fim do grupo nos moldes atuais, uma pequena vitória do presidente Vladimir Putin. Mas também dá fim à imagem de líder intocável que ele construiu ao longo de mais de 20 anos no poder, pois viu seu poder colocado em xeque de forma inédita,.
Prigozhin era um importante aliado de Putin, e o Wagner vinha sendo uma ferramenta do Kremlin para semear influência em todo o mundo. O grupo marca forte presença sobretudo na África, onde, mesmo acusado de abusos de direitos humanos, mantém parcerias com governos locais para na área de segurança e conduz campanhas de desinformação para fortalecer a imagem da Rússia e enfraquecer a das nações ocidentais. Na guerra da Ucrânia, foi crucial para algumas das mais importantes campanhas militares russas, principalmente em Bakhmut, compensando a fragilidade das forças armadas regulares diante da feroz resistência ucraniana.
A relação entre os dois antigos aliados, entretanto, vinha azedando aos poucos, conforme o empresário cobrava publicamente maior apoio estatal a seus mercenários. Primeiro, Prigozhin disse que o Wagner não recebia munição regularmente e ameaçou abandonar o campo de batalhas. Paralelamente, ampliou as críticas a cúpula militar, acusando-a de incompetência na gestão da guerra. Os alvos preferenciais eram o ministro da Defesa Sergei Shoigu e o chefe do Estado-Maior Valery Gerasimov,
A insurreição de Prigozhin gerou tensão direta entre os mercenários e os soldados, com supostos episódios de violência entre os dois lados. No início do mês, o Wagner disse ter prendido um soldado suspeito de atirar contra um veículo da organização paramilitar privada e acusou os militares de bombardearem propositalmente estradas que seriam usadas para a retirada do grupo da cidade ucraniana de Bakhmut.
O Kremlin, consciente do poder do ex-aliado de Putin, lançou uma ordem para que organizações paramilitares privadas, caso do Wagner Group, assinassem contratos formais com o governo, uma forma de colocar os mercenários sob a batuta do Kremlin. O empresário se negou a assinar.
Àquela altura, inúmeros analistas já alertavam para as ambições políticas do empresário, que despontava como potencial candidato ao comando da Rússia. Em artigo publicado no início de março pela rede CNN, a jornalista Candace Rondeaux falou sobre Prigozhin: “Está sendo alternadamente falado como um rival em potencial do presidente da Rússia, Vladimir Putin ou um alvo de assassinato”.
Igor “Strelkov” Girkin, nacionalista russo e ex-ministro da Defesa da República Popular de Donetsk, chegou a alertar para o perigo de uma revolução. No final de maio, ele disse que Prigozhin havia se aproximado de figuras não identificadas dentro do governo russo para tentar formar uma frente ampla capaz de derrubar Putin.
Então, Strelkov usou o Telegram, onde tem mais de 800 mil seguidores, para fazer a projeção pessimista: “Até o final do verão, a situação política interna do país pode mudar além do reconhecimento”, disse ele, afirmando que a “smuta”, expressão russa usada para definir a turbulência pré-revolucionária, já havia começado.
A previsão se confirmou na sexta-feira (23). Primeiro, Prigozhin acusou o exército de atacar e matar milhares de seus mercenários. Depois, ultrapassou uma linha delicada ao afirmar que a guerra na Ucrânia é injustificada. “As forças armadas da Ucrânia não iriam atacar a Rússia com o bloco da Otan”, disse ele, segundo o jornal The Moscow Times. Pouco depois teve início a revolta.
Marcha rumo a Moscou
Os primeiros indícios de que um motim se iniciava surgiram na tarde de sexta-feira (23), pelo horário de Brasília. Àquela altura, as forças de Prigozhin começavam a se movimentar dentro do território russo após o empresário acusar o exército de tentar acabar com o Wagner. Ele fez seguidas publicações no Telegram, todas com críticas ao governo e às forças armadas e carregadas de ameaças.
“Somos 25 mil (mercenários) e vamos descobrir por que esse caos está acontecendo no país. Vinte e cinco mil é uma reserva tática, mas a reserva estratégica é todo o nosso exército e todo o país. Quem quiser, junte-se a nós. Devemos acabar com esta desgraça”, disse ele no Telegram. “O mal trazido pela liderança militar do país deve ser interrompido. Eles negligenciam a vida dos soldados. Esqueceram a palavra ‘justiça’, e vamos trazê-la de volta.”
Strelkov foi um que se manifestou sobre as ações dos mercenários: “Uma tentativa de golpe está em andamento”, disse ele no Telegram. Prigozhin, por sua vez, negou a intenção de tomar o poder e alegou que estava apenas protestando contra a cúpula militar. “Isso não é golpe militar. Isso é uma marcha pela Justiça. Nossas ações não interferem em nada com o exército”, declarou.
A reação inicial do Kremlin foi abrir uma ação criminal contra Prigozhin por realizar um motim armado. O Ministério da Defesa negou ter atacado o Wagner e lançou um alerta aos mercenários, ameaçando punir todos aqueles que seguissem as ordens do empresário.
Na noite brasileira de sexta, já sábado (24) na Rússia, o Wagner assumiu o controle de uma base militar na cidade de Rostov, no sul do país e perto da fronteira com a Ucrânia. De acordo com a agência Al Jazeera, as forças armadas de novo convocaram os mercenários a abandonar Prigozhin, dizendo que eles haviam sido “enganados e arrastados para uma aventura criminosa”.
Com Rostov sob o controle do Wagner, os mercenários iniciaram então a marcha rumo a Moscou, onde a segurança havia sido reforçada. Naquele momento, o paradeiro de Putin era incerto, embora o governo afirmasse que ele seguia trabalhando normalmente no Kremlin. Aliado do presidente, o líder checheno Ramzan Kadyrov ofereceu suas tropas para apoiar Moscou, enquanto o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, passou a negociar o fim do motim.
O acordo intermediado por Lukashenko, aliado de longa data de Putin, foi alcançado no sábado (24). O chefe do Kremlin prometeu publicamente a Prigozhin que o processo criminal seria encerrado e que ele seria autorizado a se mudar para Belarus em segurança. Perderia, no entanto, o controle do Wagner Group, que a partir de agora passa a ser gerido por Moscou e tende a ser encerrado, ao menos nos moldes atuais. Os mercenários que não participaram do motim assinarão contrato com as forças armadas regulares, e os amotinados receberam a promessa de perdão.
“Em 24 horas, chegamos a 200 quilômetro de Moscou. Nesse tempo, não derramamos uma única gota do sangue de nossos combatentes”, disse Prigozhin, de acordo com a agência Reuters. “Entendendo que o sangue russo seria derramado de um lado, estamos invertendo nossas colunas e voltando aos campos de campanha conforme planejado.”
O futuro de Putin
O motim foi o maior ataque ao poder de Putin em seus 22 anos de governo. E, embora tenha conseguido deter o possível golpe, expulsando do país aquele que surgia como maior ameaça a seu reinado, o presidente sai do episódio enfraquecido, segundo analistas.
“Para uma ditadura construída sobre a ideia de poder incontestado, isso foi uma humilhação extrema, e é difícil ver o gênio da dúvida sendo forçado a voltar para a garrafa”, disse à agência Associated Press (AP) Phillips O’Brien, professor de estudos estratégicos da Universidade de St. Andrews, na Escócia. “Portanto, se Prigozhin pode ter perdido no curto prazo, é provável que Putin seja o perdedor no longo prazo.”
O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, da sigla em inglês), um think tank de defesa sediado nos EUA, diz que a atuação decisiva de Lukashenko como mediador, ao mesmo tempo em que fortalece o líder belarusso, é “humilhante para Putin”.
“A imagem de Putin aparecendo na televisão nacional pedindo o fim de uma rebelião armada e alertando sobre a repetição da revolução de 1917 – e depois exigindo a mediação de um líder estrangeiro para resolver a rebelião – terá um impacto duradouro”, diz o ISW. “A rebelião expôs a fraqueza das forças de segurança russas e demonstrou a incapacidade de Putin de usar suas forças em tempo hábil para repelir uma ameaça interna e corroeu ainda mais seu monopólio da força.”
O ativista político britânico Bill Browder, autor do livro “Alerta Vermelho: Como Me Tornei o Inimigo Número Um de Putin” (editora Intrínseca), usou sua conta no Twitter para questionar o perdão ao empresário. “Isso não faz sentido para mim. Putin ordenou que Prighozin fosse morto hoje cedo. Como ele volta atrás? Como Prighozin sobrevive depois disso? Putin nunca perdoa nem esquece.”
New reports claim that Wagner boss turns troops back from Moscow. This doesn’t make any sense to me. Putin ordered Prighozin killed earlier today. How does he walk that back? How does Prighozin survive after this? Putin never forgives nor forgets https://t.co/DI8RE6Uitt
— Bill Browder (@Billbrowder) June 24, 2023
Browder também avaliou as consequências do motim em um artigo, do qual é coautor, publicado na revista Foreing Policy. “Com Putin não mais capaz de controlar as gangues armadas rivais de sua própria criação, sua armadura foi perfurada e sua aura formidável está se dissipando”, diz o texto.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, aproveitou a oportunidade para dizer que a Rússia também sai enfraquecida do episódio. “Hoje o mundo pode ver que os mestres da Rússia não controlam nada. E isso não significa nada. Simplesmente um caos completo. Uma ausência de qualquer previsibilidade”, disse ele em seu pronunciamento diário gravado em vídeo.
O secretário de Estado norte-americano Antony Blinken também entende que Putin perdeu força com o motim e projetou que a crise não esta encerrada. “Acho que não vimos o ato final”, disse ele à rede ABC, segundo reproduziu a agência Reuters. “Vimos mais rachaduras surgirem na fachada russa. É muito cedo para dizer exatamente para onde vão e quando chegarão lá. Mas certamente temos todo tipo de novas questões que Putin terá de abordar no semanas e meses à frente.”