Mali acusa a França de ‘espionagem’ por filmar mercenários enterrando corpos

Combatentes do Wagner Group são acusados de colocar os cadáveres em uma vala comum a fim de incriminar as tropas francesas

O governo do Mali acusa a França de “espionagem” e “subversão” por ter registrado imagens do que seriam soldados enterrando corpos perto de uma base militar em Gossi, no norte do país africano. Os homens vistos nas imagens seriam mercenários do Wagner Group, uma organização paramilitar associada ao Kremlin e atualmente a serviço do coronel Assimi Goita, que governa o Mali. As informações são da agência catari Al Jazeera.

O vídeo foi feito por um drone em 20 de abril, um dia depois de as tropas francesas entregarem a base miliar ao exército do Mali. Paris alega que os mercenários estavam enterrando os corpos ali com a intenção de acusarem falsamente os antigos ocupantes da base de crimes de guerra.

Exército francês realiza operação conjunta com forças do Níger no Sahel (Foto: Facebook/@armee2terre)

O exército maliano, por sua vez, abriu uma investigação para apurar o caso e desde já se exime de responsabilidade. O argumento é o de que o estado dos corpos indica que as pessoas morreram antes de a base se entregue ao Mali. Paralelamente, o governo local, diz que a ação dos franceses ao registrarem as imagens foi irregular.

“O referido drone estava presente para espionar nossas bravas FAMa (forças armadas do Mali)”, disse o porta-voz do governo Abdoulaye Maiga. “Além da espionagem, as forças francesas foram culpadas de subversão ao publicarem imagens falsas elaboradas para acusar as FAMa de responsabilidade por matar civis, com o objetivo de manchar sua imagem”.

Os vídeos mostram dez soldados, supostamente do Wagner Group, enterrando aproximadamente uma dúzia de corpos, suspeitos de serem de cidadãos malianos. A vala comum onde os cadáveres foram depositados fica cerca de 4 quilômetros a leste da base, na região norte do Mali.

No vídeo registrado pelo drone, um dos supostos mercenários é visto com uma câmera, aparentemente filmando a ação. Isso explicaria a divulgação de imagens em redes sociais, com acusações direcionadas aos soldados do país europeu. Paris alega que os perfis que fizeram a divulgação dessas cenas teriam sido criados pelo próprio Wagner Group, parte de uma campanha de difamação contra os franceses.

Retirada de tropas

Principal aliada ocidental do Mali, a França marca presença militar no Mali há cerca de dez anos, período no qual foi determinante para acabar com o domínio de grupos extremistas sobretudo na região norte do país. Desde o ano passado, porém, as forças armadas francesas iniciaram um processo de retirada de tropas, devido a um desacerto entre os dois governos. A decisão de Paris gerou dúvidas quanto à capacidade de o Mali sustentar os avanços na luta contra o jihadismo.

Uma das razões para a retirada francesa foi justamente o acordo com os mercenários do Wagner Group firmado pelo coronel Assimi Goita, que assumiu o poder no golpe de Estado de maio de 2021.

Wagner é uma milícia notória na Síria e na República Centro-Africana por ter cometido abusos e todos os tipos de violações que não correspondem a nenhum solução, e por isso é incompatível com a nossa presença”, disse o ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian.

Também pesou contra a colaboração entre os dois governos a possibilidade levantada diversas vezes por Goita de abrir negociações com grupos terroristas, decisão rejeitada por Paris, bem como a demora para se realizar no país nova eleição democrática, ampliando a duração do governo militar.

Por que isso importa?

A instabilidade no Mali começou com o golpe de Estado em 2012, quando vários grupos rebeldes e extremistas tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos salários dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem o militar na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população malinesa rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Militarmente, especialistas e políticos ocidentais enxergam uma geopolítica delicada na região, devido ao aumento constante da influência de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico (EI) e à consequente explosão da violência nos confrontos entre extremistas e militares. Além disso, trata-se de uma posição importante para traficantes de armas e pessoas, e o processo em curso de redução das tropas franceses, que atuam no país desde 2013, tende a piorar a situação.

Os conflitos, antes concentrados no norte do país, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. A região central do Mali se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra forças do governo.

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