Mercenários do Wagner Group são associados a massacres de civis no Mali

Organização russa teria atuado em operações ao lado do exército maliano que resultaram em centenas de mortes

Com largo histórico de abusos de direitos humanos em lutas armadas na Líbia, na Síria, na República Centro-Africana, em Moçambique e agora na Ucrânia, o Wagner Group, uma misteriosa organização de mercenários russos, tem sido associado agora a massacres que resultaram na morte de centenas de civis no Mali. As informações são do jornal britânico Guardian.

A ação dos milicianos na África, respaldada por acordos de segurança entre governos nacionais e o Kremlin, vem aumentando os temores sobre o impacto de tais intervenções ao redor do continente.

Com o aumento vertiginoso da influência de Moscou na região, o Wagner chegou em 2021 a Bamaco após fechar um acordo com seus novos governantes militares. Tal aperto de mãos teve oposição da França, já que o governo Macron destacou tropas para o oeste do Sahel, onde as forças passaram oito anos lutando contra grupos jihadistas na conturbada região.

Mercenários do Wagner Group no front (Foto: Twitter/Reprodução)

Documentos internos do exército maliano revelaram a presença de combatentes do Wagner – referidos como “instrutores russos” – em “missões mistas” junto de forças militares malianas, operações nas quais foram registradas diversas baixas de civis.

Dados organizados pelo Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (Acled, na sigla em inglês) apontam que cerca de 456 civis morreram em nove incidentes que envolveram o exército local e os mercenários russos no período de janeiro a meados de abril deste ano.

A pior matança foi registrada em março, quando o Wagner Group teria supostamente participado de um massacre em Moura, uma vila controlada por extremistas islâmicos. Na ocasião, entre 350 e 380 pessoas foram mortas durante quatro dias de intervenção.

A junta militar do Mali, que tomou o poder após um golpe em maio do ano passado, alega que os russos no país são instrutores e “não estão em funções de combate”. Fontes sustentam que o pagamento pelos serviços do Wagner Group seria de US$ 10,8 milhões (cerca de R$ 56,7 milhões) por mês, dinheiro que vem da extração de minerais, acreditam os especialistas. Os combatentes ainda seriam responsáveis pelo treinamento de militares do Mali, bem como estariam dando proteção a oficiais graduados.

Na terça-feira (3), um relatório da ONG Human Rights Watch alegou que forças na República Centro-Africana identificadas como russas teriam matado e torturado civis desde 2019. O Wagner Group também marcou presença na invasão à Ucrânia, estando conectado a atrocidades cometidas na ex-república soviética.

Presença sangrenta

Autoridades do Reino Unido manifestaram temor com o que foi definido como “uma deterioração significativa na situação dos direitos humanos” no Mali nos últimos meses. A atmosfera de violência desse período estaria vinculada à chegada de um contingente de 600 a mil combatentes da companhia militar privada (PMC, na sigla em inglês) russa.

“Assim como a presença de mercenários russos aumentou as violações e abusos dos direitos humanos na República Centro-Africana em 2021, o mesmo está sendo visto agora no Mali”, disse um diplomata britânico.

Em março, mais de 30 corpos foram encontrados queimados na cidade de Niono, no centro do Mali, após operações conjuntas entre forças malianas e o Wagner Group. Testemunhas locais dão conta de que a matança de civis ocorreu pelas mãos de soldados malianos e mercenários. Segundo a Human Rights Watch, muitas vítimas foram amarradas, vendadas e depois baleadas. As autoridades malianas negam as acusações.

Organização obscura

Oficialmente, o Wagner Group sequer existe. Mas há indícios de que ao menos 10 mil pessoas já atuaram para a misteriosa organização, cuja primeira empreitada de que se tem notícia foi em 2014, quando se aliou a separatistas pró-Rússia contra o governo da Ucrânia. Desde então, há sinais de presença do grupo em conflitos em diversos países, como Líbia, Síria, Sudão, Moçambique e República Centro Africana.

Em agosto, um tablet perdido ajudou a expor os segredos da organização. Uma reportagem da rede britânica BBC teve acesso ao equipamento, que expõe a participação da milícia na guerra civil da Líbia, sugere a proximidade entre associados do grupo e o governo russo e dá fortes indícios de que os mercenários são responsáveis por inúmeros crimes de guerra.

Por que isso importa?

A instabilidade no Mali começou com o golpe de Estado em 2012, quando vários grupos rebeldes e extremistas tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos salários dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem o militar na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população malinesa rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Militarmente, especialistas e políticos ocidentais enxergam uma geopolítica delicada na região, devido ao aumento constante da influência de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico (EI) e à consequente explosão da violência nos confrontos entre extremistas e militares. Além disso, trata-se de uma posição importante para traficantes de armas e pessoas, e o processo em curso de redução das tropas franceses, que atuam no país desde 2013, tende a piorar a situação.

Os conflitos, antes concentrados no norte do país, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. A região central do Mali se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra forças do governo.

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