No início de novembro, o Ministério do Comércio da China gerou um princípio de pânico no país ao pedir à população que armazenasse itens de primeira necessidade, sobretudo alimentos. A incomum manifestação do governo, que não foi acompanhada por qualquer justificativa, levou os chineses às compras e gerou questionamentos, segundo o jornal francês Le Figaro. Estaria a caminho uma guerra com Taiwan? Ou seria um problema de escassez de alimentos? Nesta semana, o presidente Xi Jinping voltou ao tema, evidenciando a preocupação de Beijing com a segurança alimentar.
Quando o governo recomendou a estocagem, no mês passado, o anúncio foi sucedido por comunicados de que uma guerra com Taiwan não estava no horizonte. O alerta foi atribuído, sim, à crise climática global, tendo o calor intenso e as inundações arruinado lavouras na província agrícola de Shandong. Tanto que os preços de certos alimentos haviam disparado, com o pepino e o espinafre mais caros que a carne.
Há ainda o problema da Covid-19, que mesmo a China e seu severo sistema de contenção não conseguiram erradicar. Aliás, a rigidez das normas de controle da pandemia no país ajudam a explicar o temor alimentar, vez que basta um caso para o governo fechar ruas, quarteirões, eventualmente cidades inteiras. E o risco de novo lockdown ainda existe, o que levaria à redução da produção e ao aumento da estocagem pela população.
Por trás de tudo isso há uma questão que preocupa Beijing ainda mais: a escassez de carvão. Uma severa crise de fornecimento de energia chegou a deixar residências no escuro e sem água em setembro, impactando duramente na produção industrial e, consequentemente, no crescimento econômico do país.
Apagões foram registrados sobretudo no nordeste da China, com ao menos dez províncias forçadas a aderir a um programa de racionamento. O problema é que quase 60% da economia chinesa depende do carvão, que teve seu fornecimento afetado pela pandemia e por um conflito comercial com a Austrália, grande fornecedora do produto.
Para a indústria, o impacto é enorme. Num caso extremo, uma fábrica têxtil da província de Jiangsu foi alertada para que cortasse totalmente a energia num período entre setembro e outubro. Com isso, cerca de 500 trabalhadores tiveram que deixar seus postos e receberam um mês de folga remunerada. As entregas de pedidos, tanto para o mercado doméstico quanto para o exterior, foram reprogramadas.
Uma série de fatores levou à escassez “inesperada e sem precedentes”, segundo o periódico do PCC. A alta demanda de carvão pela indústria elevou o preço a níveis históricos e diminuiu o suprimento do produto. Paralelamente, há um endurecimento das normas ambientais no tocante à emissão de gases, com a China determinada a reduzir a produção de energia a partir de combustíveis fósseis.
Todas essas questões surgem emolduradas por um inverno que promete ser rigoroso, com o frio impactando nas lavouras, no consumo de carvão para aquecer as residências e nos índices de transmissão da Covid-19 em locais fechados. O que ajuda a explicar o princípio de pânico pela população.
Contornos políticos
O pânico inicial foi superado, mas o tema da segurança alimentar segue em alta na China. E ganhou contornos políticos no início da semana, quando Xi Jinping voltou a tocar no assunto em uma conferência com autoridades econômicas do governo.
No encontro, o presidente afirmou que os Estados Unidos poderiam contribuir para o problema impondo sanções e bloqueios que levariam a fome de volta à China, ainda traumatizada pela Grande Fome dos anos de Mao Tsé-tung e sempre às voltas com o desafio de alimentar a população. O próprio presidente citou o “tempo sem grãos” durante o encontro, de acordo com o jornal Washington Examiner.
“Eu tenho dito repetidamente que as tigelas de arroz do povo chinês devem ser seguradas firmemente em nossas próprias mãos. Nunca deixemos outros nos pegarem pela garganta ao comer, que é uma questão básica de sobrevivência”, disse o líder chinês.
A China não é autossuficiente no âmbito agrícola e depende das importações para alimentar a população. O que explica a declaração de Xi, vez que os principais fornecedores de comida do país são os Estados Unidos ou aliados dos norte-americanos: Brasil, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, de acordo com dados de 2017 do think tank Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).
“Nosso país depende relativamente das importações de commodities primárias”, disse no último sábado (11) Han Wenxiu, vice-diretor do Comitê Central para Assuntos Econômicos e Financeiros do Partido Comunista Chinês (PCC). “Qualquer grande escassez de commodities primárias pode se transformar em um rinoceronte cinza, especialmente no que diz respeito à segurança alimentar”.
Em 2017, a China comprou US$ 104 bilhões em alimentos do exterior, sendo quase US$ 23 bilhões do Brasil, cujo presidente Jair Bolsonaro não esconde sua rejeição a Beijing, e mais US$ 18 bilhões dos EUA .“A realidade é que a China simplesmente não tem água e terra para ser autossuficiente em alimentos”, reforça Evan Ellis, especialista na relação China-América Latina do Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército dos EUA.
Segundo o analista, porém, o problema da segurança alimentar está mais ligado à própria China que aos EUA. Afinal, mesmo que Washington reduzisse ou cortasse o fornecimento de comida, Beijing poderia buscar outros fornecedores. O problema maior, segundo ele, seria uma guerra contra Taiwan, que transformaria as águas do Indo-Pacífico em território proibido para embarcações comerciais.
“Uma guerra ativa em seu entorno criaria sérios transtornos para muitas coisas diferentes, e provavelmente incluiria os alimentos”, diz Ellis, que sentencia. “Não é que um corte de alimentos pelos EUA seria a causa. Seriam os chineses lançando uma guerra em seu próprio país”.