Afetada por sanções, Rússia recorre à Índia para manter sua indústria funcionando

Bilhões arrecadados com a venda de energia não compensam as perdas que os russos vêm sofrendo durante a guerra

Isolada diplomaticamente desde a invasão à Ucrânia, em fevereiro, e engessada pelas sanções impostas pelo Ocidente, a Rússia tem recorrido a “parceiros internacionais confiáveis” em busca de produtos de setores-chave de sua indústria, como tecnologia, automobilístico, vestuário e geração de energia. Um dos principais financiadores neste momento é a Índia, que recentemente recebeu de Moscou uma volumosa lista de compras com peças para carros, aeronaves e trens. As informações são da agência Reuters.

Nem os bilhões arrecadados com a venda de energia compensam as perdas que os russos vêm sofrendo durante a guerra, já que a lista evidencia a incapacidade do país em manter indústrias vitais funcionando. O documento, porém, não deixa claro quantas mercadorias serão eventualmente exportadas por Nova Délhi nem qual a quantidade desejada.

Uma fonte do governo indiano disse que se trata de um pedido “incomum”, observando ainda que o país pretende aumentar o comércio com Moscou e assim reduzir o crescente déficit na balança com o parceiro. 

Faltam até para-choques: setor automotivo é um dos mais afetados (Foto: www.kremlin.ru/Divulgação)

Para detalhar as necessidades, o Ministério da Indústria e Comércio da Rússia pediu às grandes empresas que forneçam listas de matérias-primas e equipamentos que estão precisando, segundo revelou uma fonte do setor, que falou sob condição de anonimato. Algumas empresas indianas, no entanto, estão receosas de que os negócios possam conflitar com as sanções ocidentais, levando assim a punições.

As sanções impostas pelos EUA e seus aliados europeus comprometeram o fornecimento de alguns produtos cruciais na Rússia. O setor de aviação do país enfrenta uma escassez aguda de peças, já que quase todos os aviões são fabricados internacionalmente. O mercado de peças automotivas está igualmente em baixa, já que todas as principais montadoras globais deixaram o mercado.

O documento com os itens desejados, que tem 13 páginas, inclui peças de motores de automóveis, como pistões, bombas de óleo e bobinas de ignição. Também há demanda por para-choques, cintos de segurança e sistemas de infoentretenimento.

O setor automobilístico, aliás, é um dos mais prejudicados. Tanto que a icônica montadora Lada, hoje controlada pela AutoVAZ, lançou recentemente o Lada Granta Classic, um veículo com preço de 678.300 rublos (R$ 65,4 mil) “pelado”, como popularmente se diz sobre modelos simples: sem airbags, sem freios ABS, sem sistema eletrônico de estabilidade, sem cinto de segurança com pré-tensionador e sem GPS.

A lista também incluiu 41 itens para aeronaves e helicópteros, entre eles componentes de trem de pouso, sistemas de combustível, de comunicação e de extinção de incêndio, coletes salva-vidas e pneus de aviação.

Matérias-primas para a produção de papel, sacolas de papel e embalagens de consumo e materiais e equipamentos para a produção de têxteis, incluindo fios e corantes, também foram incluídos na lista de desejos do Kremlin.

A precária situação da indústria nacional de embalagens chegou a ser um tópico abordado pelo presidente Vladimir Putin durante um painel no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, realizado em junho. O chefe do Kremlin fez pouco caso da questão quando um moderador mostrou a ele uma caixa de suco totalmente branca por falta de tinta.

“O que é mais importante para nós: sermos independentes, soberanos e garantirmos nosso desenvolvimento futuro agora, para as próximas gerações, ou termos embalagem hoje?”, disse o presidente. Só quem pode responder a essa pergunta é o consumidor russo.

Por que isso importa?

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro, mais de mil empresas ocidentais deixaram de operar em território russo, seja de maneira temporária ou definitiva, parcial ou integral. São companhias que querem evitar o risco de desobedecer as sanções ocidentais, ou mesmo a reação negativa da opinião pública caso continuem a lucrar no mercado russo. O levantamento foi feito pela Universidade de Yale, nos EUA.

A debandada tem prejudicado o consumidor local, privado de produtos de setores diversos, como entretenimento, tecnologia, automobilístico, vestuário e geração de energia.

No setor de alimentação, o McDonald’s vendeu seu negócio no país a um empresário russo. Ao fim do ano passado, a rede tinha 847 lojas no país. Diferente do que ocorre no resto do mundo, onde habitualmente atua no sistema de franquias, 84% das lojas russas eram operadas pela própria companhia. Somado ao faturamento na Ucrânia, a operação respondia por 9% da receita global da empresa.

McDonald’s na Rússia: ativos foram vendidos, e uma nova marca surgiu (Foto: Wikimedia Commons)

Duas importantes cervejarias da Europa, a holandesa Heineken e a dinamarquesa Carlsberg, também anunciaram que venderiam seus negócios e deixariam de atuar na Rússia. Os planos da empresa da Holanda incluem manter o pagamento de seus funcionários até o final do ano, período no qual buscará um comprador, bem como vender o negócio sem margem de lucro. Já a companhia da Dinamarca diz que seguirá em funcionamento, mas com uma operação em pequena escala, até ser vendida.

Uma decisão que já causou problemas foi o fim dos serviços das companhias de cartões de crédito MastercardVisa. O maior banco estatal da Rússia, o Sberbank, disse que o impacto na rotina doméstica dos cidadãos seria pequeno e assegurou que ainda é possível “sacar dinheiro, fazer transferências usando o número do cartão e pagar em lojas russas offline e online”, de acordo com a rede britânica BBC.

A tendência é a de que os consumidores russos possam usar os cartões normalmente até que percam a validade e, depois disso, não recebam novos plásticos. Entretanto, os cartões emitidos na Rússia já deixaram de ser aceitos no exterior. Isso atrapalhou, por exemplo, turistas que ficaram impedidos de deixar a Tailândia, por problemas com voos cancelados e cartões bloqueados.

No setor de vestuário, quem anunciou estar deixando o mercado russo é a Levi’s, sob o argumento de que quaisquer considerações comerciais “são claramente secundárias em relação ao sofrimento humano experimentado por tantos”. Nike e Adidas também suspenderam todas as operações no mercado russo. A sueca Ikea, gigante do setor de móveis, é outra que decidiu deixar a Rússia em função da guerra.

Nas áreas de entretenimento e tecnologia, alguns gigantes também optaram por suspender as vendas de produtos e serviços no país de Vladimir Putin. A Netflix interrompeu seus serviços e cancelou todos os projetos e aquisições na Rússia, enquanto WarnerDisney e Sony adiaram os lançamentos de suas novas produções no país. Já a Apple excluiu os aplicativos das empresas estatais russas de mídia RT e Sputnik e disse que não mais venderá seus produtos, como iPhonesiPads, em território russo. Panasonic, Microsoft, NokiaEricsson e Samsung são outras que optaram por encerrar as operações no país.

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