Kiev denuncia ‘câmaras de tortura’ usadas pelos russos em áreas reconquistadas

Autoridades locais apreenderam documentos que sugerem a criação de uma espécie de força policial durante a ocupação

Novos indícios de crimes de guerra possivelmente cometidos pelas tropas de ocupação russas continuam a surgir em áreas recentemente reconquistadas pelas forças da Ucrânia. Segundo o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, ao menos dez “câmaras de tortura” foram descobertas nessas regiões retomadas. As informações são da agência Associated Press (AP).

Um dos locais é a vila de Kozacha Lopan, a menos de dois quilômetros da fronteira russa e retomada por Kiev no dia 11 de setembro em meio à grande contraofensiva de suas tropas na região de Kharkiv. Pelo aplicativo de mensagens Telegram, a promotoria regional revelou uma dessas salas, à qual teve acesso a equipe de reportagem da AP.

Na vila, as autoridades locais teriam apreendido documentos que sugerem a criação de uma espécie de força policial pelas tropas russas durante o período de ocupação, bem como instrumentos de tortura elétrica usados contra os prisioneiros mantidos nas salas de detenção.

Menina observa cratera deixada por explosão na Ucrânia (Foto: Unicef/Anton Skyba)

Uma das salas tinha barras de metal formando uma espécie de cela no canto, com um saco de dormir e edredons posicionados sobre placas de isopor, que serviam para separar o que parecia ser uma cama do chão de terra úmida. Um antigo aparelho de telefone da era soviética havia sido modificado para servir, aparentemente, ao propósito de eletrocutar prisioneiros em sessões de tortura.

Viacheslav Zadorenko, prefeito do município de Derhachi, no qual fica localizada Kozacha Lopan, disse que os ocupantes limitaram a comunicação dos moradores, sendo que estes foram obrigados a se apresentar e exibir os documentos às autoridades russas. A própria mãe dele não teria conseguido sair a tempo e assim teve que permanecer na vila.

“Eles sabiam que ela era minha mãe, então a mantiveram. Algumas das torturas físicas foram aplicadas a ela, que estava sob pressão psicológica”, disse. “As pessoas passaram por momentos difíceis, muitos moradores cujo destino é desconhecido até hoje, muitos moradores morreram, muitas pessoas foram evacuadas à força para a federação russa”.

Agora, as autoridades tentam identificar vítimas de abuso, para que possam depor e ter suas histórias usadas como prova em eventuais julgamentos de crimes de guerra. Também têm sido recuperados corpos de pessoas mortas no que parecem ser os campos de batalha.

Civis mortos

Em Izyum, também em Kharkiv, foi encontrada uma vala comum com cerca de 450 corpos, segundo autoridades ucranianas. A cidade tem importância estratégica para Moscou porque fica localizada perto da divisa entre as regiões de Kharkiv e Donetsk. É fundamental na rota de suprimentos das forças armadas russas, e sua retomada pela Ucrânia compromete as operações do Kremlin no leste ucraniano.

As autoridades ucranianas estão preparadas para encontrar mais valas comuns em outras áreas, segundo Sergei Bolvinov, investigador-chefe da polícia local. Volodymyr Tymoshko, chefe da polícia nacional designado para a região, confirmou que mais um local já foi identificado, mas não revelou onde. “Pelas nossas estimativas, há mais de 440 corpos lá”, disse ele.

Moscou, porém, nega qualquer responsabilidade. “É uma mentira, e é claro que vamos defender a verdade em toda essa história”, disse o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov na segunda-feira (19), segundo o jornal independente The Moscow Times.

“Kiev está promovendo o mesmo cenário em Izyum que fez com a provocação em Bucha”, emendou o porta-voz, citando outra cidade na qual foram encontradas evidências de crimes de guerra russos igualmente desmentidos pelo governo Putin.

Por que isso importa?

No início de agosto, o governo ucraniano disse que estão em andamento investigações de quase 26 mil crimes de guerra atribuídos às tropas russas durante o conflito. Segundo a procuradoria-geral do país, 135 pessoas estariam ligadas a esses crimes, sendo que 15 acusados estão sob custódia.

Yuriy Bilousov, chefe do departamento de crimes de guerra da procuradoria-geral ucraniana, disse que 13 casos de violação do direito internacional já foram levados aos tribunais, com sete sentenças emitidas. Entre elas a do soldado russo Vadim Shishimarin, primeiro militar a enfrentar um processo do gênero em quase meio ano de conflito. Ele foi condenado à prisão perpétua em maio, por matar um civil desarmado no dia 28 de fevereiro. 

As investigações de crimes de guerra conduzidas por Kiev contam com o suporte ocidental, que ajuda a financiar os esforços do governo ucraniano e também tem suas próprias equipes em ação. A Alemanha, por exemplo, disse no final de junho que analisa centenas de crimes de guerra possivelmente cometidos por tropas da Rússia.

Na mira das autoridades alemãs não estariam apenas os soldados do exército russo diretamente acusados de tais crimes. Também estariam sob investigação oficiais de alta patente e políticos suspeitos de ordenar os abusos.

Quem atua igualmente nesse sentido é o Tribunal Penal Internacional (TPI), que vê na guerra uma forma de reduzir as críticas recebidas desde sua fundação, há 20 anos. Nesse período, a corte conseguiu apenas três condenações por crimes de guerra e outras cinco por interferência na Justiça.

O TPI afirmou inclusive que planeja abrir ainda neste ano o primeiro caso contra as forças armadas da Rússia. Não foram revelados detalhes de qual poderia ser este primeiro processo, embora venha sendo debatida com Kiev a entrega de pelo menos um oficial russo ao tribunal. Trata-se de um prisioneiro de guerra disposto a testemunhar contra altos comandantes russos. 

No início de junho, a Comissão Europeia anunciou que destinaria 7,25 milhões de euros ao TPI, a fim de apoiar as investigações. “Neste contexto, é crucial garantir o armazenamento seguro de provas fora da Ucrânia, bem como apoiar as investigações e processos por várias autoridades judiciárias europeias e internacionais”, disse o órgão na ocasião.

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