Secretamente, Rússia prepara lei para comprar empresas ocidentais a preços irrisórios

Kremlin pretende nacionalizar as companhias para conter o êxodo de marcas que atinge o país desde o início da guerra

O governo da Rússia prepara secretamente uma lei que, se colocada em vigor, dará ao Estado o poder de apreender os ativos de empresas de nações hostis e então comprá-los por valores irrisórios. A revelação foi feita pelo jornal Financial Times, que teve acesso ao texto legal com exclusividade.

Segundo pessoas familiarizadas com o andamento do processo, o Kremlin já solicitou a redação da lei, o que vem sendo feito em sigilo. O objetivo final é nacionalizar totalmente as companhias ocidentais, uma forma de conter o êxodo de marcas que atinge o mercado russo desde o início da guerra da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022.

Os principais alvos seriam empresas de países que, através de sanções econômicas, se apropriaram de ativos russos sob o argumento de punir o País pela agressão à Ucrânia. Cerca de 300 bilhões de euros (R$ 1,57 trilhão) em ativos do banco central russo estão congelados no Ocidente atualmente.

A lei não entregaria os ativos ao Estado, e sim à iniciativa privada, com a exclusão de todos os acionistas estrangeiros. Porém, os compradores russos seriam colocados ao alcance do governo.

Questionado, o porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, citou a debandada de empresas ocidentais iniciada nas primeiras semanas após a invasão da Ucrânia, ressaltando que muitas dessas companhias deixaram os funcionários russos sem salário.

“Se uma empresa não cumpre suas obrigações, é claro que ela se enquadra na categoria de empresas desobedientes”, disse Peskov. “Dizemos adeus a essas empresas. E o que fazemos com seus ativos depois disso é problema nosso.”

McDonald’s na Rússia: rede vendeu seus ativos logo no início da guerra (Foto: Wikimedia Commons)

O processo de incorporação de ativos estrangeiros pelo Estado não chega a ser novidade, mas ocorreu de forma tímida desde o início da guerra. Escora-se em um decreto assinado por Putin em abril que já fez algumas vítimas.

O decreto de abril lista quais empresas podem ter seus ativos apreendidos, o que limita o alcance legal. Os alvos iniciais foram a gigante alemã de energia Uniper e a finlandesa Fortum, cujas ações já haviam sido adquiridas por Moscou. Juntas, as duas companhias controlam uma dezena de usinas termelétricas em todo o país, entre elas a maior usina a gás russa, a Surgut-2.

Na ocasião, a Fortum disse que um gestor indicado pelo Kremlin havia assumido o comando. Diz o texto que “considera a nomeação do novo CEO como uma confirmação de que o novo decreto presidencial está sendo promulgado e a subsidiária da Fortum foi colocada sob gestão temporária de ativos”.

Segundo um empresário que atualmente tenta vender seus ativos na Rússia, cuja identidade foi mantida em sigilo, “a nacionalização é inevitável”, apenas “uma questão de tempo”. Ele prevê que os grupos de commodities serão alvo preferencial, pois o governo busca ampliar as receitas de exportação. Já as empresas de tecnologia seriam menos atingidas por serem “difíceis de administrar”.

Por que isso importa?

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, mais de mil empresas ocidentais deixaram de operar em território russo, seja de maneira temporária ou definitiva, parcial ou integral. São companhias que querem evitar o risco de desobedecer as sanções ocidentais, ou mesmo a reação negativa da opinião pública caso continuem a lucrar no mercado russo. O levantamento foi feito pela Universidade de Yale, nos EUA.

A debandada prejudica o consumidor local, privado de produtos de setores diversos, como entretenimento, tecnologia, automobilístico, vestuário e geração de energia.

No setor de alimentação, o McDonald’s vendeu seu negócio no país a um empresário russo. Ao fim de 2021, a rede tinha 847 lojas no país. Diferente do que ocorre no resto do mundo, onde habitualmente atua no sistema de franquias, 84% das lojas russas eram operadas pela própria companhia. Somado ao faturamento na Ucrânia, a operação respondia por 9% da receita global da empresa.

Duas importantes cervejarias da Europa, a holandesa Heineken e a dinamarquesa Carlsberg, também anunciaram que venderiam seus negócios e deixariam de atuar na Rússia.

Uma situação que causou problemas sérios aos russos foi o fim dos serviços das companhias de cartões de crédito MastercardVisa. Cartões emitidos na Rússia deixaram de ser aceitos no exterior, o que atrapalhou turistas provenientes da Russia. No ano passado, um grupo deles foi impedido de deixar a Tailândia por problemas com voos cancelados e cartões bloqueados.

No setor de vestuário, quem anunciou sua saída do mercado russo é a Levi’s, sob o argumento de que quaisquer considerações comerciais “são claramente secundárias em relação ao sofrimento humano experimentado por tantos”. Nike e Adidas também suspenderam todas as operações. A sueca Ikea, gigante do setor de móveis, é outra que decidiu deixar a Rússia em função da guerra.

Nas áreas de entretenimento e tecnologia, alguns gigantes também optaram por suspender as vendas de produtos e serviços no país de Vladimir Putin. A Netflix interrompeu seus serviços e cancelou todos os projetos e aquisições na Rússia, enquanto WarnerDisney e Sony adiaram os lançamentos de suas novas produções no país. Já a Apple excluiu os aplicativos das empresas estatais russas de mídia RT e Sputnik e disse que não mais venderá seus produtos, como iPhonesiPads, em território russo. Nintendo, Nokia, Panasonic, Microsoft, Ericsson e Samsung são outras que optaram por encerrar as operações no país.

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