ARTIGO: Julgamentos ideológicos e a composição das Cortes Supremas

Pesquisador aponta necessidade de reformas para inibir comportamento político em Supremas Cortes Federais

Artigo publicado originalmente no Jornal da USP (Universidade de São Paulo)

*por Roger Stiefelmann Leal, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP

Proferido após o falecimento de Ruth Ginsburg, o comentário do ex-presidente Bill Clinton expressa o atual estágio do debate sobre a composição da Suprema Corte dos EUA, o desempenho de suas funções e o significado das novas nomeações.

A questão sobre a inclinação ideológica da Corte e de seus integrantes não é, ademais, estranha ao ambiente político brasileiro. O recente episódio da nomeação do novo ministro do STF reavivou a discussão, sobretudo em virtude de manifestações acerca de seu posicionamento político.

Ao se atribuir relevância à orientação ideológica dos membros da Corte e de suas decisões, enfatiza-se noção que propõe indevida sobreposição conceitual entre as esferas legislativa e judicial. No processo legislativo, delibera-se sobre propostas que, caso aprovadas, definem parâmetros de observância obrigatória a toda a sociedade.

Para isso, toma-se em consideração as diversas visões ideológicas que conquistaram representação político-legislativa. Tais visões apontam, não raro, para soluções distintas, com diretrizes que melhor atendem ao bem comum.

A deliberação envolve dinâmicas variadas de atuação dos agentes políticos que vão desde a confrontação entre diferentes visões até o diálogo voltado à conciliação de posições políticas e à identificação de pontos passíveis de concessão ou compromisso. Prevalece a solução possível, que consegue reunir o apoio da maioria.

Nesses termos, considerar preponderante na atuação da Corte Suprema e de seus integrantes a vinculação a determinada ideologia induz compreensão de que — de modo similar aos parlamentares e governantes eleitos — seus julgamentos decorrem da escolha de soluções que melhor promovem o bem comum.

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O ex-presidente dos EUA, Bill Clinton, em palestra no Central High School, na cidade de Phoenix, Arizona, em março de 2016 (Foto: CreativeCommons/Gage Skidmore)

As decisões judiciais, nessa linha, assumiriam o papel de veicular o discurso jurídico necessário a justificar o resultado condizente com a visão do julgador, ainda que, para isso, seja necessário distorcer o sentido dos textos normativos.

O tribunal concorreria, desse modo, com o legislador na definição das diretrizes que governam a vida em sociedade. Em síntese, faria política e não justiça. Substituiria o direito pela ideologia.

Num estado democrático, a função legislativa é a atividade estatal responsável por imprimir concepções ideológicas à ordem jurídica. Do processo legislativo democrático resultam textos legais que estruturam soluções necessariamente impregnadas dessas visões ideológicas representadas pelos agentes que concorreram para sua aprovação.

Trata-se da concretização da máxima fundamental, consagrada na Constituição, de que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos (…). Aos tribunais, diferentemente, cabe interpretar e dar aplicação a esses textos normativos em face das controvérsias que lhes são submetidas, fazendo prevalecer as diretrizes adotadas pelos representantes eleitos.

É claro que, caso as leis aprovadas estejam em “evidente oposição” ao “manifesto teor da Constituição” – na clássica lição de Hamilton –, caberá aos tribunais e, em última instância, à Corte deixar de aplicá-las. Trata-se da chamada jurisdição constitucional, cujo exercício deve ou deveria ser excepcional, tendo lugar apenas em caso de flagrante ofensa à Constituição.

É na seara da defesa da Constituição que reside aspecto central à discussão da suposta atuação ideológica das Cortes. As constituições, ao dispor sobre direitos fundamentais, contemplam enunciados normativos de elevada abstração e generalidade, inscrevendo ideais e palavras de ordem como bens constitucionalmente protegidos.

Assim, postula-se garantir a inviolabilidade da igualdade, da intimidade e da propriedade, bem como a livre manifestação do pensamento e a liberdade de crença religiosa, sem apresentar especificações que permitam compreender mais concretamente seu alcance e significado.

Mostra-se de extrema dificuldade – assinalava o Justice Robert Jackson em julgado da Suprema Corte dos EUA – “a tarefa de traduzir as generalidades majestáticas da Declaração de Direitos (Bill of Rights), (…) em restrições concretas a agentes públicos (…)”.

Essas generalidades são objeto das principais divergências entre as ideologias políticas. Sobre elas – igualdade, propriedade, segurança, liberdade, trabalho, saúde etc. – são erigidos os discursos retóricos que conferem substância às distintas linhas ideológicas, atribuindo-lhes significados, pesos e magnitudes diferentes. Ou seja, tais expressões encontram-se no centro do debate político que caracteriza o regime democrático.

Em certa medida, as cláusulas constitucionais que se limitam a assegurar secamente o direito a esses ideais, sem explicitar suas implicações concretas, testam as virtudes e a posição institucional de juízes e tribunais, principalmente, das Cortes Supremas.

Instam os órgãos que exercem jurisdição constitucional a encerrar tais generalidades majestáticas em concepções filiadas a linhas ideológicas e impô-las à sociedade de forma ampla, expansiva e otimizante.

Por isso, uma das principais virtudes de um juiz constitucional é a capacidade de separar sua opinião política do exercício do poder de julgar. Não lhe cabe se colocar como intérprete e representante legítimo dos interesses da população de modo a fazer prevalecer sua visão sobre o bem comum. Essa posição cabe a outras instâncias e autoridades mais bem equipadas para tanto.

A importância dessa virtude, aliás, não passa despercebida ao ambiente político. Ronald Reagan, ao falar, em 1986, de suas indicações à Suprema Corte, destacou esse aspecto, afirmando procurar “escolher juízes que olham para o direito como algo a ser honrado, respeitado e interpretado de acordo com a intenção do legislador, sem capricho ou ideologia”.

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Prédio da Suprema Corte dos EUA em Washington, outubro de 2011 (Foto: WikiCommons/Joe Ravi)

Por seu turno, assinalou Barack Obama, em 2016, que, em primeiro lugar, buscava selecionar nomes que tivessem “integridade intelectual”. Ou seja, devem eles “olhar para os fatos e o direito, mesmo que lhes pareça desconfortável, que não gostem do resultado, e aplicar o direito, reconhecendo que esta é sua função”.

Dir-se-á, contudo, que o discurso pode não ser coerente com a prática. É perfeitamente possível alardear a contenção e o equilíbrio do juiz e aprovar nome alinhado à sua orientação ideológica para compor a Corte Suprema. Tal prática, ao contrário, estimularia eventuais candidatos a se comprometerem com determinadas concepções políticas e impô-las como conteúdo das normas constitucionais.

É possível, porém, cogitar reformas que inibam tal comprometimento político, a exemplo da ampliação do quórum de aprovação dos nomes indicados. A necessidade de obter o apoio de distintas correntes representadas no Legislativo incentiva postura suprapartidária e equidistante, desencorajando engajamento mais evidente.

Às Cortes Supremas compete dizer o direito como ele é e não como deveria ser. Cabe-lhes, parafraseando Aliomar Baleeiro, função semelhante à do árbitro de futebol. A elas cumpre “apitar, botar jogador para fora do campo, marcar pênalti, botar ordem no campo”.

Não devem, portanto, “jogar, meter o pé na bola” e marcar gols. A torcida não suportaria árbitro parcial que interfere no jogo para favorecer ou prejudicar uma das equipes.

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