Atletas são alertados para os riscos de criticarem a China nos Jogos de Inverno

Tenista Peng Shuai, que desapareceu após acusar um membro do governo de abusos sexual, é exemplo do que pode ocorrer aos críticos

Os atletas que competirão nos jogos Olímpicos de Inverno Beijing 2022, a partir de 4 de fevereiro, têm sido alertados para os riscos de fazerem críticas ao governo da China durante o evento. A questão dos abusos aos direitos humanos no país asiático está em evidência em todo o mundo, mas tocar no assunto durante o evento, em território chinês, pode criar sérios problemas para os competidores e demais membros de delegações olímpicas. As informações são do jornal britânico The Guardian.

“As leis chinesas são muito vagas sobre os crimes que podem ser usados em processos de liberdade de expressão”, disse Yaqiu Wang, pesquisadora de China na ONG Human Rights Watch (HRW). “As pessoas podem ser acusadas de provocar brigas ou causar problemas. Há todos os tipos de crimes em que podem ser enquadrados comentários pacíficos e críticos. E, na China, a taxa de condenação é de 99%”.

Yaqiu usou como exemplo o caso da tenista Peng Shuai, que desapareceu após acusar um membro do Partido Comunista Chinês (PCC) de abuso sexual. Depois de alguns dias sumida, a atleta reapareceu e desmentiu as acusações que ela própria havia feito anteriormente. Segundo a pesquisadora, esse é “um bom indicador do que pode acontecer” aos atletas que vierem a se manifestar.

Monumento celebra os Jogos de Inverno Beijing 2022 em Xidan, área comercial de Beijing (Foto: Wikimedia Commons)

Os atletas norte-americanos foram orientados por seus próprios dirigentes a não tocarem em assuntos espinhosos, como os abusos contra os uigures reportados em Xinjiang, a luta por independência de Taiwan, a repressão em Hong Kong ou a questão do Tibete.

Para o esquiador norte-americano Noah Hoffman, que competiu nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 e 2018, a censura é vergonhosa. “Os atletas têm uma plataforma incrível e capacidade de falar, de serem líderes na sociedade. E, no entanto, a equipe não os deixa responder a perguntas sobre certos assuntos antes desses Jogos. Isso me deixa chateado”, afirmou.

Ainda assim, Hoffman admite que a melhor alternativa é engolir as críticas, ao menos no período em que os atletas estiverem na China. “Meu conselho aos atletas é que fiquem em silêncio, porque falar ameaçaria sua própria segurança. E isso não é uma situação razoável para os atletas. Eles podem falar quando voltarem”.

Sophie Richardson, diretora de China na HRW, diz que qualquer tipo de manifestação, mesmo que não seja pública, pode colocar os atletas em perigo. Ela cita o exemplo dos Jogos Olímpicos de Verão 2008, também realizados em Beijing, e diz que já naquela ocasião a vigilância estatal era extrema. De lá para cá, com os avanços tecnológicos, a situação piorou bastante.

“Uma das características dos Jogos de 2008 foi o uso pelas autoridades do que era então considerado alta tecnologia. Mas isso empalidece em comparação com o estado de vigilância orwelliano“, diz ela. “As autoridades usam em todo o país ferramentas como IA (inteligência artificial) e policiamento preditivo, bancos de dados Big Data, ampla vigilância de plataformas de mídia social, impedindo às pessoas de se envolverem em certos tipos de conversas. Qualquer pessoa que esteja viajando ao país para esses jogos, sejam jornalistas, atletas ou, treinadores, precisa estar ciente de que esse tipo de vigilância pode afetá-los”.

Para Rob Koehler, diretor geral da Global Athlete, maior organização internacional de defesa de atletas, a censura nos Jogos Beijing 2022 é em boa parte culpa do COI (Comitê Olímpico Internacional). “É absolutamente ridículo que estejamos dizendo aos atletas para ficarem quietos. Mas o COI não saiu proativamente para indicar que irá protegê-los”, disse ele. “Silêncio é cumplicidade, e é por isso que temos preocupações. Por isso, aconselhamos os atletas a não se manifestarem. Queremos que eles compitam e usem sua voz quando chegarem em casa”.

Estádio Nacional, o Ninho do Pássaro, recebe abertura e encerramento de Beijing 2022 (Foto: Wikimedia Commons)

O boicote diplomático

Como forma de protestar contra os abusos de direitos humanos cometidos pelo governo da China, diversos governos aderiram ao boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno Beijing 2022. Assim, não enviarão representantes estatais ao evento, mas os atletas podem competir normalmente. A medida visa somente a ferir o orgulho do país-sede, algo particularmente relevante para Beijing. Saiba quem aderiu ao boicote.

NA EUROPA

Lituânia

Envolta em uma crise diplomática com a China após a abertura de uma embaixada de fato de Taiwan em seu território, a Lituânia foi o primeiro país do mundo a anunciar um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno. O presidente Gitanas Nauseda confirmou que nem ele nem nenhum ministro do governo irá prestigiar os Jogos.

Bélgica

Conforme o primeiro-ministro belga Alexander De Croo afirmou aos parlamentares de seu país no dia 18 de dezembro, “o governo federal não enviará representação aos Jogos”.

Dinamarca

Copenhague afirmou no dia 14 de janeiro que não enviaria representação diplomática aos Jogos, devido à situação dos direitos humanos na China.

O resto da União Europeia

Vários Estados-Membros ainda não se pronunciaram, argumentando que aguardam uma tomada de decisão em comum acordo da União Europeia (UE).

Na França, o discurso é contraditório. O Ministério da Educação, Juventude e Esportes declarou à imprensa que “o esporte é um mundo em si que deve ser preservado tanto quanto possível da interferência política”, confirmando a presença de algumas autoridades. Do outro lado, o ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, afirmou que Paris é “a favor da posição comum” e que “esta questão deve ser tratada como a Europa”.

Alemanha deu justificativa semelhante à maioria que não bateu o martelo sobre o assunto, argumentando que “a decisão deve ser tomada em harmonia com nossos amigos europeus”.

Apesar da declarada predileção por uma posição afinada, vários líderes duvidam da capacidade do bloco de chegar a uma decisão conjunta e até mesmo da utilidade de um boicote Caso do primeiro-ministro de Luxemburgo, Jean Asselborn, que afirmou que “os Jogos Olímpicos são sempre políticos, não há Jogos Olímpicos politicamente neutros”.

Reino Unido

A um mês da abertura, protestos cobram boicote global aos Jogos Beijing 2022
Protesto em Berlim no dia 4 de janeiro de 2022, contra os Jogos de Inverno em Beijing (Foto: reprodução/Twitter)

O premiê britânico Boris Johnson anunciou o boicote no dia 8 de dezembro. “Haverá efetivamente um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno em Beijing”, declarou ele, acrescentando que “o governo não hesita em levantar essas questões com a China, como fiz com o presidente Xi na última vez em que falei com ele”.

NAS AMÉRICAS

O primeiro país a anunciar o boicote foi os Estados Unidos, decisão que se escorou sobretudo nas acusações de genocídio que pesam contra Beijing na região de Xinjiang, devido ao tratamento dispensado pelo país à minoria étnica dos uigures.

O Canadá seguiu o exemplo. O primeiro-ministro Justin Trudeau se justificou: “Nos últimos anos, temos sido muito claros sobre nossas profundas preocupações em relação às violações dos direitos humanos“.

NA ÁSIA

Japão não enviará uma delegação de ministros aos Jogos, mas preferiu não chamar o gesto de boicote, como explicou o secretário-chefe de gabinete Hirokazu Matsuno à imprensa: “Não usamos um termo específico para descrever como comparecemos”.

Já o premiê Fumio Kishida, que fez dos direitos humanos a principal bandeira de sua diplomacia ao criar um cargo consultivo especial para lidar com a questão, disse que espera estabelecer uma relação construtiva com os vizinhos. “O Japão acredita que é importante para a China garantir os valores universais de liberdade, respeito pelos direitos humanos básicos e o Estado de Direito, que são valores universais na comunidade internacional”, disse Matsuno.

NA OCEANIA

A Austrália foi o primeiro país a seguir o passo de Washington, anunciando o boicote em 8 de dezembro. O primeiro-ministro Scott Morrison usou o mesmo argumento dos abusos dos direitos humanos, mas citou ainda as recentes sanções impostas por Beijing a Camberra. A relação bilateral entre as nações está desgastada, e o embaixador da China em Camberra, Cheng Jingye, anunciou em outubro que deixaria o posto ao fim do mandato.

A Nova Zelândia apoiou Canberra na decisão, justificando que era “a coisa certa a fazer”. No entanto, as autoridades locais enfatizaram que “houve uma série de fatores, mas principalmente a ver com Covid-19”.

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