Sistema de vigilância da China vai além de Xinjiang e é hoje uma preocupação global

Reconhecimento facial, identificação por voz, reeducação ideológica... Tecnologia amplamente usada pela China coloca o Ocidente em alerta

Em janeiro de 2017, a União Africana (AU, da sigla em inglês) descobriu que os servidores de sua sede, na capital etíope Adis Abeba, enviavam diariamente, durante a madrugada, dados sigilosos a um servidor em Xangai, na China, e que o prédio estava repleto de microfones escondidos. Os servidores foram trocados, mas um problema semelhante se repetiu em 2020, quando os novos servidores foram invadidos por hackers chineses que roubaram vídeos de vigilância das áreas interna e externa. Não por coincidência, a sede da AU havia sido construída com financiamento chinês, por uma construtora chinesa. E os servidores originais, aqueles de 2018, eram chineses. Esses episódios, com os quais Beijing sempre negou ter relação, ajudam a explicar a desconfiança generalizada com a infraestrutura digital chinesa, um temor que aumenta com a chegada da tecnologia móvel 5G e a soberania global da Huawei no setor.

A África tem sido um continente de particular interesse da China, que investiu bilhões por lá através de sua  Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, da sigla em inglês BRI). “Sabemos que a China opera dessa forma em todo o mundo, inclusive na África. Eles claramente têm um interesse particular na sede da UA”, disse Joshua Meservey, analista sênior de políticas para a África na Heritage Foundation, em entrevista à rede Voice of America (VOA).

O eventual interesse da China pelos dados sigilosos da UA é fácil de compreender, do ponto de vista geopolítico e comercial. A extração das imagens das câmeras de vigilância, porém, parece não fazer sentido, vez que não há sequer áudio acompanhando as imagens. “Tudo o que você realmente pode fazer é rastrear os movimentos físicos das pessoas, eu acho. Mas claramente eles sentiram que valeu a pena”, diz Meservey.

Uma possibilidade, de acordo com o analista, é a de que as imagens contribuam para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (IA), coletando características faciais e outras informações de identificação das pessoas no edifício. “Eles estão coletando imensas quantidades de dados sobre seus próprios cidadãos, inserindo-os em sistemas de IA e, em seguida, refinando-os”, disse Meservey. “Então, isso é algo que eu acho que eles estão procurando”.

Câmeras de vigilância: a China está de olho no mundo todo (Foto: Matthew Henry/Unsplash)

Inteligência artificial

Em setembro, a alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, chegou a pedir uma moratória global na venda e no uso de IA. Segundo ela, sistemas que usam essa tecnologia “causam um sério risco aos direitos humanos” e, por isso, devem ser mantidos fora de circulação até que políticas de proteção entrem em vigor.  

Na ocasião, a ONU publicou um relatório analisando como a IA afeta o direito das pessoas à privacidade e também à liberdade de movimento, à liberdade de expressão e ao direito de se reunirem para manifestações pacíficas.  

O relatório destaca como as tecnologias biométricas, incluindo reconhecimento facial, são cada vez mais utilizadas pelos países, organizações internacionais e empresas de tecnologia. Segundo Bachjelet, “a inteligência artificial pode ajudar as sociedades a enfrentarem os maiores desafios dos nossos tempos”, mas pode também ter um “impacto negativo e até catastrófico se for utilizada sem levar em consideração como afeta os direitos das pessoas”. 

Vigilância doméstica

Na província chinesa de Xinjiang, tecnologias diversas têm sido usadas como parte de um sofisticado sistema de vigilância contra a minoria étnica dos uiguires. O aparato estatal, classificado como abuso dos direitos humanos por Estados e organismos intergovernamentais, levou Washington a impor seguidas sanções econômicas a empresas acusadas de associação com o projeto chinês.

Na semana passada, o Departamento do Comércio anunciou a inclusão de uma nova série de empresas da China na lista de restrições, por suposta relação com os abusos em Xinjiang. São companhias acusadas de implantar biotecnologia e outras tecnologias em aplicações militares usadas na vigilância e nos demais abusos cometidos contra os uigures.

“A busca científica por biotecnologia e inovação médica pode salvar vidas. Infelizmente, a PRC (República Popular da China, da sigla em inglês) está escolhendo usar essas tecnologias para buscar o controle sobre seu povo e a repressão de membros de grupos étnicos e religiosos minoritários”, diz o texto do órgão.

De acordo com a secretária de Comércio dos EUA, Gina M. Raimondo, as empresas sancionadas usam commodities, tecnologias e softwares dos EUA desenvolvidos para “apoiar a ciência médica e a inovação biotécnica”, mas que nas mãos dos chineses acabam sendo “desviados para usos contrários à segurança nacional dos EUA”.

A questão Huawei

Informações obtidas pelo jornal The Washington Post recentemente sugerem que a ligação da Huawei com o aparato chinês de vigilância governamental é maior do que se imaginava. Os dados aparecem em uma apresentação de Power Point que estava disponível no site da empresa e foi removida. Repleto de itens “confidenciais”, o arquivo mostra como a tecnologia da empresa pode ajudar Beijing a identificar indivíduos por voz, monitorar pessoas de interesse, gerenciar reeducação ideológica, organizar cronogramas de trabalho para prisioneiros e rastrear compradores através do reconhecimento facial.

De um lado, a Huawei nega atuar a serviço do Estado, mas admite que não tem como controlar a forma como sua tecnologia é usada pelos clientes. Do outro, as autoridades enxergam uma aproximação cada vez maior entre a Huawei e Beijing e citam a Lei de Inteligência Nacional da China, de 2017, segundo a qual as empresas nacionais devem “apoiar, cooperar e colaborar no trabalho de inteligência nacional”, o que poderia forçar a gigante da tecnologia a trabalhar a serviço do Partido Comunista Chinês (PCC).

É essa suspeita que tem levado governos de países diversos a vetarem o uso de infraestrutura da Huawei em suas futuras redes de 5G. Douglas Koneff, embaixador interino dos EUA no Brasil, disse em outubro que Washington tem “fortes preocupações sobre o potencial papel da Huawei na infraestrutura de telecomunicações. Não somente no Brasil”. E destacou países seguem a mesma linha: “Reino Unido, França, Suécia, Índia, Austrália, Canadá e Japão já chegaram à mesma conclusão”, disse ele, acusando a empresa de ter um “histórico de comportamento antiético, ilegal e inadequado, incluindo roubo de propriedade intelectual”.

Em agosto, Portugal havia seguido o mesmo caminho, excluindo a Huawei de suas redes. A medida, no entanto, não partiu do governo português, mas sim das três empresas dominantes no mercado de telefonia móvel, NOS, Vodafone e Altice. Juntas, as companhias optaram por não utilizar a tecnologia chinesa. As empresas, no entanto, deixaram suas portas abertas para a utilização da Huawei em partes não essenciais da estrutura do 5G.

Mais recentemente, quem também confirmou a exclusão de tecnologia chinesa na rede 5G foi a Índia, embora a empresa não tenha sido citada nominalmente. “Sem anotar o nome de nenhuma empresa em particular, gostaria de dizer que qualquer aquisição que tenha acontecido para 5G está acontecendo sob o regime de fontes confiáveis”, disse Ashwini Vaishnaw, ministro das Comunicações indiano, segundo o jornal local The Economic Times.

Prédio da Huawei em ShenZhen, na China (Foto: Wikimedia Commons)

Huawei no Brasil

No Brasil, ao contrário das nações citadas, não foi possível excluir a Huawei, que tem presença enorme na infraestrutura de telecomunicações. Por exemplo, são da empresa mais de 80% das antenas que retransmitem o sinal das atuais redes 2G, 3G e 4G. Assim, o custo de uma eventual transição para outra companhia seria proibitivo. A aceitação da Huawei também se deve ao fato de a China ser o principal parceiro comercial do país, e uma proibição levaria a sanções de Beijing. A Suécia, por exemplo, baniu a empresa de sua rede 5G, e o consequente boicote à Ericsson imposto por Beijing levou os suecos a reduzirem suas operações no país asiático.

A alternativa encontrada pelo governo brasileiro para reduzir o impacto de eventuais brechas de segurança foi a criação de uma rede 5G governamental exclusiva, sem a presença de infraestrutura chinesa. “Hoje, a Huawei não está apta a participar da rede privativa, segundo o que foi colocado pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e pela nossa portaria”, disse o ministro das Comunicações, Fábio Faria, no início de novembro, quando foi realizado o leilão das bandas de 5G.

Prejuízos ao Brasil

Em conversa com A Referência, o advogado Ericson M. Scorsim, consultor em Direito Regulatório das Comunicações e autor do livro ‘Jogo geopolítico das comunicações 5G: Estados Unidos e China: impacto no Brasil’, entende que a rejeição à tecnologia chinesa tende a trazer mais prejuízos que benefícios ao Brasil. “Não vejo a China como uma ameaça ao Brasil. Ao contrário, para o Brasil, a China é um parceiro comercial em diversos setores econômicos. Se o Brasil se distanciar da realização de negócios com a China, perderá algumas vantagens geoestratégicas”, diz ele.

Na visão de Scorsim, quem mais se beneficia com esse distanciamento são os Estados Unidos, rivais comerciais e políticos da China. E que sequer oferecerem uma alterativa viável à tecnologia chinesa. “Para os Estados Unidos a China é um adversário e representa uma ameaça à sua liderança global. Inclusive, representa um incomodo, à medida em que os Estados Unidos não têm uma empresa líder global em 5G”, afirma ele.

Scorsim também refuta a campanha global norte-americana contra a empresa chinesa. “Este precedente norte-americano de banimento de uma empresa pode ser perigoso, pode representar um risco geopolítico para outras empresas no futuro próximo. Atualmente, o alvo dos Estados Unidos são as empresas chinesas; amanhã, poderá ser uma empresa brasileira, europeia…”.

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