Polícia de Xinjiang investiga celulares de uigures que têm o Alcorão armazenado

Autoridades tem uma lista com 50 mil arquivos considerados 'extremistas', e quem tiver um deles no celular torna-se um alvo

A ONG Human Rights Watch (HRW), uma organização internacional de direitos humanos com sede em Nova York, emitiu um comunicado na quarta-feira (3) acusando as autoridades da província de Xinjiang, na China, de monitorar os telefones celulares de milhões de uigures, uma minoria étnica muçulmana que vive na região.

Uma lista organizada pela polícia contém 50 mil arquivos multimídia relacionados ao que Beijing acredita ser “extremismo“, e o mero armazenamento do Alcorão nos aparelhos pode levar a questionamentos e investigações.

A análise forense dos metadados dessas listagens de arquivos feita pela HRW descobriu que, durante um período de nove meses entre 2017 e 2018, a polícia realizou quase 11 milhões de buscas em um total de 1,2 milhão de telefones celulares em Urumqi, capital de Xinjiang, que tem população de 3,5 milhões, disse o comunicado.

Na crença islâmica, o Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos que contém revelações que Alá transmitiu a Maomé (Foto: WikiCommons)

“O uso abusivo da tecnologia de vigilância pelo governo chinês em Xinjiang significa que os uigures que simplesmente armazenam o Alcorão em seus telefones podem desencadear um interrogatório policial”, disse Maya Wang, diretora interina da HRW na China. “Os governos preocupados devem identificar as empresas de tecnologia envolvidas nessa indústria de vigilância em massa e controle social e tomar as medidas apropriadas para acabar com seu envolvimento”.

A ONG vem repetidamente levantando preocupações sobre a forma como o governo chinês combate o que considera “terrorismo” e “extremismo”, principal justificativa de Beijing para a repressão, sob o argumento de garantir a segurança nacional.

“A lei antiterrorista da China define ‘terrorismo’ e ‘extremismo’ de maneira excessivamente ampla e vaga, o que facilita processos, privação de liberdade e outras restrições para atos que não tenham a intenção de causar morte ou danos físicos graves para fins políticos, religiosos ou ideológicos”, disse a ONG no comunicado.

A pesquisa da Human Rights Watch descobriu que, de mais de mil arquivos nos telefones celulares de aproximadamente 1,4 mil residentes de Urumqi que correspondiam à lista principal da polícia, 57% deles eram materiais religiosos islâmicos aparentemente comuns, incluindo capítulos do Alcorão, leituras conhecidas como suratas.

A declaração afirma que esta lista faz parte de um grande banco de dados de 52 GB contendo mais de 1,6 mil tabelas de dados vazadas de Xinjiang obtidas pelo jornal independente norte-americano The Intercept em 2019. De acordo com o veículo, a polícia de Urumqi realizou vigilância e prisões de 2015 a 2019 com base em relatórios policiais do banco de dados.

A HRW enfatizou que os governos têm obrigações sob a lei internacional para definir crimes precisos e respeitar a liberdade de expressão e pensamento, incluindo o direito de manter opiniões consideradas ilegais. 

Associação do Islã à violência

Segundo a ONG, criminalizar a mera posse de material considerado extremista, mesmo que o acusado não tenha intenção de usá-lo para causar danos a terceiros, é uma ameaça gravíssima à fé, à privacidade e à liberdade de expressão. Esses direitos são garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que a China assinou, mas ainda não ratificou.

“O governo chinês confunde de forma ultrajante, mas perigosa, o Islã com o extremismo violento para justificar seus abusos repugnantes contra os muçulmanos turcomanos em Xinjiang”, disse Wang. “O Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) deveria tomar medidas há muito esperadas, investigando os abusos do governo chinês em Xinjiang e além”.

A Human Rights Watch disse que o Conselho de Direitos Humanos da ONU deve conduzir rapidamente uma investigação internacional independente sobre as graves violações de direitos humanos e supressão de liberdades fundamentais pelo governo chinês contra uigures e outras minorias muçulmanas em Xinjiang. 

Um número sem precedentes de especialistas independentes em direitos humanos da ONU e centenas de ONGs em todo o mundo pediram essa ação.

Por que isso importa?

Nos últimos anos, Beijing tem intensificado o controle sobre a religião no país, parte de um processo de “sinicização” da fé. No início de dezembro de 2021, no Encontro Nacional Sobre Assuntos Religiosos do Partido Comunista Chinês (PCC), o presidente chinês Xi Jinping deixou clara a intenção de colocar a religião sob o guarda-chuva da sigla.

“Devemos manter o trabalho religiosos na direção essencial do partido. Devemos continuar a direcionar nosso país para a sinicização da religião. Devemos continuar a pegar o grande número de crentes religiosos e uni-los em torno do partido e do governo”, disse o líder nacional no evento.

O principal expoente do desafio que os fieis enfrentam na China é a etnia muçulmana dos uigures, que habitam a região autônoma de Xinjiang, no noroeste do país, fazendo fronteira com nações da Ásia Central, com quem divide raízes étnicas e linguísticas.

Os uigures, cerca de 11 milhões, enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% dos chineses. Denúncias dão conta de que Beijing usa de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa em Xinjiang.

Estimativas apontam que um em cada 20 uigures ou cidadãos de minoria étnica já passou por campos de detenção de forma arbitrária desde 2014.

O governo de Joe Biden, nos EUA, foi o primeiro a usar o termo “genocídio” para descrever as ações da China em relação aos uigures. Em seguida, Reino Unido e Canadá também adotaram a designação, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.

Em agosto de 2022, a ONU (Organização das Nações Unidas) divulgou um aguardado relatório que fala em “graves violações dos direitos humanos” cometidas em Xinjiang. O documento destaca “padrões de tortura ou maus-tratos, incluindo tratamento médico forçado e condições adversas de detenção”, bem como “alegações de incidentes individuais de violência sexual e de gênero”.

O governo chinês refuta as acusações e classifica como “campos de reeducação” as áreas onde vivem milhões de uigures. O argumento para isolar e vigiar a etnia muçulmana é o da “segurança nacional”, sob a justificativa de evitar a radicalização dos fiéis.

Zhao Lijian, ex-porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, chegou a afirmar que o trabalho forçado uigur é “a maior mentira do século”.

Ele condenou as sanções econômicas impostas pelo governo norte-americano a empresas de todo o mundo que usem produtos ou matérias-primas provenientes de Xinjiang. “Os Estados Unidos tanto criam mentiras quanto tomam ações flagrantes com base em suas mentiras para violar as regras do comércio internacional e os princípios da economia de mercado”, disse ele.

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