Entenda cinco questões geopolíticas que podem fazer de 2022 um ano marcante

Tensão diplomática entre a China e o Ocidente, possível invasão da Ucrânia pela Rússia e outras questões delicadas merecem atenção global neste ano

O ano que chegou ao fim foi marcado por tensões diplomáticas, disputas geopolíticas sensíveis e a redução da ameaça global do terrorismo islâmico. Muitas dessas questões não se encerraram em 2021, prometendo se estender por 2022. Neste primeiro dia de janeiro, A Referência relembra cinco situações delicadas que prometem fazer do ano que se inicia um momento marcante na história da humanidade.

Tensão diplomática entre a China e o Ocidente

O crescimento da influência global e os lampejos imperialistas da China deixaram o Ocidente em alerta em 2021. A força de Beijing foi sentida especialmente na região do Pacífico, com o aumento da repressão em Hong Kong, a reivindicação de soberania no Mar da China Meridional e sobretudo a beligerância direcionada a Taiwan. Esta terceira questão, em particular, aumentou o distanciamento entre a China e as principais potências ocidentais, gerando tensão com os Estados Unidos e a União Europeia (UE). O risco de um conflito militar foi se ampliando conforme 2021 se aproximou do fim, com as incursões chinesas no espaço aéreo taiwanês e as ameaças de retaliação do Ocidente.

Taiwan é uma questão territorial sensível para os chineses. Relações exteriores que tratem o território como uma nação autônoma estão, no entendimento de Beijing, em desacordo com o princípio defendido de “Uma Só China“, que também encara Hong Kong como parte do território chinês. Diante da aproximação do governo taiwanês com os Estados Unidos, desde 2020 a China tem endurecido a retórica contra as reivindicações de independência da ilha.

Exército chinês realiza exercício militar em agosto de 2021: risco de invasão a Taiwan permanece em 2022 (Foto: eng.chinamil.com.cn/)

Embora não tenha relações diplomáticas formais com Taiwan, assim como a maioria dos países do mundo, os EUA são o mais importante financiador internacional e principal fornecedor de armas da ilha, o que causa imenso desgosto a Beijing, que tem adotado uma postura belicista na tentativa de controlar a situação.

Jatos militares chineses passaram a realizar exercícios militares nas regiões limítrofes com Taiwan e habitualmente invadem o espaço aéreo taiwanês, deixando claro que a China não aceitará a independência do território “sem uma guerra“.

embate, porém, pode não terminar em confronto militar, e sim em um bloqueio total da ilha. É o que apontaram relatórios produzidos pelos EUA e por Taiwan em junho de 2021. O documento taiwanês pontua que Beijing não teria capacidade de lançar uma invasão em grande escala. Segundo o Pentágono, isso “provavelmente sobrecarregaria as forças armadas chinesas”.

Caso ocorresse, a escalada militar criaria um “risco político e militar significativo” para Beijing. Ainda assim, ambos os relatórios reconhecem que a China é capaz de bloquear Taiwan com cortes dos tráfegos aéreo e naval e das redes de informação. O bloqueio sufocaria a ilha, criando uma reação internacional semelhante àquela que seria causada por uma eventual ação militar.

Em artigo publicado em novembro, Michael Beckley e Hal Brands alertaram que o tempo está se esgotando para frear o ímpeto belicista chinês. “Os sinais de alerta históricos da China já estão piscando em vermelho. Na verdade, ter uma visão de longo prazo de por que e sob quais circunstâncias a China luta é a chave para entender o quão curto o tempo se tornou para os Estados Unidos e os outros países no caminho de Beijing”.

Possível invasão da Ucrânia pela Rússia

tensão entre Ucrânia e Rússia explodiu com a anexação da Crimeia por Moscou, em 2014, e ganhou força novamente em 2021. Isso porque Moscou apoia os separatistas que enfrentam as forças de Kiev na região leste ucraniana. O conflito armado, que já matou mais de dez mil pessoas, opõe o governo ucraniano às forças rebeldes das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que formam a região de Donbass.

Washington tem monitorado o crescimento do exército russo na região fronteiriça e compartilhou informações de inteligência com seus aliados. Os dados apontam um aumento de tropas e artilharia russas que permitiriam um avanço rápido e em grande escala, bastando para isso a aprovação de Putin e a adoção das medidas logísticas necessárias.

Especialistas calculam que a Rússia tenha entre 70 mil e 100 mil soldados nas proximidades da Ucrânia, sendo necessária uma força de 175 mil para invadir, além de mais combustível e munição, cujos estoques atuais na região seriam insuficientes. Conforme o cenário descrito pela inteligência dos EUA, as tropas russas invadiriam o país vizinho pela Crimeia e por Belarus.

1ª Divisão Blindada das Forças Armadas da Rússia durante exercício: invasão iminente (Foto: Russian Ministry of Defence/Divulgação)

Um eventual conflito, porém, não seria tão fácil para Moscou como os anteriores. Isso porque, desde 2014, o Ocidente ajudou a Ucrânia a desenvolver e ampliar suas forças armadas, com fornecimento de armamento, tecnologia e treinamento. Assim, embora Putin negue qualquer intenção de lançar uma ofensiva, se isso ocorrer, as tropas russas enfrentariam um exército ucraniano muito mais capaz de resistir.

Enquanto o mundo acompanha tenso o risco de uma guerra, a Rússia condiciona um eventual acordo de paz ao distanciamento entre a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a Ucrânia. A expansão do bloco atlântico rumo ao leste é um antigo temor de Moscou e está diretamente relacionado ao aumento de tropas russas perto das fronteiras ucranianas.

Na visão de Vladimir Frolov, especialista em relações internacionais, as condições exageradas impostas pela Rússia parecem ser apenas uma cortina de fumaça. “A escalada continua provável, devido a requisitos irrealistas sendo feitos em prazos artificialmente curtos, bem como a ênfase insuficiente na diplomacia – e exagerada no aspecto militar”. O ano de 2022 nos mostrará se Frolov tem razão.

Reconhecimento internacional do governo talibã

No dia 15 de agosto de 2021, o Taleban derrubou o governo legítimo do Afeganistão e assumiu o comando do país. Desde então, os talibãs têm imposto um regime baseado numa interpretação radical da Sharia, a lei islâmica, que atinge especialmente as mulheres, proibidas de trabalhar, estudar, praticar esportes, aparecer na TV e até de viajar. Paralelamente, o grupo fechou 2021 buscando reconhecimento internacional como governo afegão de direito, missão prejudicada justamente por seu radicalismo.

No início de dezembro de 2021, em sua Assembleia Geral, a ONU (Organização das Nações Unidas) aprovou uma determinação adiando indeterminadamente o reconhecimento do Taleban como governo legítimo do Afeganistão. O anúncio significa que a organização islâmica não será autorizada a entrar no organismo intergovernamental, mantendo-se assim distante da comunidade internacional.

Diversos países ocidentais chegaram a se reunir com representantes talibãs, mas sem maiores avanços diplomáticos. Rússia, Irã, China, Uzbequistão, Turcomenistão e Paquistão estão entre as nações que mantém contato mais próximo com os novos governantes afegãos, mas sem um reconhecimento formal. Até o governo paquistanês contestou o tratamento dispensado às mulheres no Afeganistão, exigência semelhante à feita pelo Ocidente para iniciar qualquer tratativa no sentido de aproximar os talibãs da cúpula governista global.

Reunião de líderes do governo talibã no Afeganistão: em busca de reconhecimento internacional (Foto: twitter.com/IeaOffice)

A China até negocia acordos comerciais com o Taleban, mas não passa disso. A China Metallurgical Group (MCC), empresa estatal chinesa, firmou em 2007 um contrato para desenvolver o campo da mina de cobre Aynak, cerca de 32 quilômetros a sudeste de Cabul. O investimento chegaria a US$ 2,8 bilhões e envolveria construções de uma usina de energia elétrica e de estradas de ferro, gerando 5 mil empregos locais. O projeto foi interrompido desde a queda de Cabul, mas tende a ser retomado em 2022.

“Nós consideramos reabri-lo depois que a situação se estabilizar e o reconhecimento internacional, incluindo o reconhecimento pelo governo chinês do regime do Taleban, ocorrer”, disse um funcionário não identificado da MCC ao jornal estatal Global Times, da China.

Wang Yu, embaixador chinês no Afeganistão, disse que a China também tem dado suporte aos talibãs no campo diplomático. “Temos falado no cenário internacional pelos países em desenvolvimento, como o Afeganistão e outros países que sofrem tratamento injusto”, disse ele. Entretanto, Beijing deixou transparecer que, embora veja com bons olhos o reconhecimento internacional do Taleban, não pretende ser a primeira nação a fazê-lo.

Mais do que legitimar o poder talibã internacionalmente, o reconhecimento é crucial para fortalecer financeiramente um país pobre e sem perspectivas imediatas de gerar riqueza. Inclusive, os Estados Unidos, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) cortaram o acesso de Cabul a mais de US$ 9,5 bilhões em empréstimos, fundos e ativos, e somente as boas relações diplomáticas permitiriam o fim desse bloqueio.

Fortalecimento militar da Sérvia

Em 2018, o orçamento militar da Sérvia foi de US$ 700 milhões. Em 2021, mesmo em meio a uma pandemia que exigiu investimento elevado, o país mais que duplicou aquele valor, para US$ 1,5 bilhão. Assim, deixou para trás a vizinha Croácia, que é membro da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e se tornou a nação mais militarizada dos Bálcãs, colocando as nações mais próximas em alerta para um possível conflito.

Em setembro de 2021, durante as comemorações de um feriado nacional, o presidente Aleksandar Vucic celebrou o fato de o exército sérvio estar “cinco vezes mais forte” em relação há alguns anos atrás. E tratou o orçamento elevado como uma conquista nacional, dizendo que o poderio militar “aumentará drasticamente nos próximos nove meses” e que o exército “sempre estará em posição de defender nosso país e nosso povo”.

O incremento do arsenal sérvio não foi ignorado pelos vizinhos. Em julho, a Bósnia e Herzegovina manifestou preocupação quando o Ministro do Interior da Sérvia disse que “a tarefa desta geração de políticos é formar um mundo sérvio, ou seja, unir os sérvios onde quer que vivam”. A declaração foi interpretada como uma referência à Guerra da Bósnia, ancorada no conceito de “Grande Sérvia” que levou a uma limpeza étnica por forças militares e paramilitares sérvias no país vizinho, entre 1992 e 1995.

Exercícios militares do exército da Sérvia, em setembro de 2021 (Foto: reprodução/Facebook)

Para Daniel Serwer, um dos negociadores do Acordo de Paz de Dayton de 1995, que encerrou aquele conflito, é impossível separar a declaração do ministro do massacre dos anos 1990. “O mundo sérvio é indistinguível da Grande Sérvia, ou de todos os sérvios em um país”, diz ele.

Na visão de Reuf Bajrovic, da organização Aliança EUA-Europa, a movimentação militar da Sérvia sugere a intenção de agir no Kosovo e na Bósnia assim que as circunstâncias forem favoráveis. E isso pode ocorrer em 2022, aproveitando inclusive a cortina de fumaça fornecida por outros conflitos paralelos, como aqueles que se desenham em Taiwan e na Ucrânia.

São duas as hipóteses que dariam a Vucic a confiança para iniciar um conflito: a saída das tropas norte-americanas da força de paz estabelecida no Kosovo ou uma sinalização de que a Rússia, principal aliada de Belgrado, esteja disposta a interceder na região.

Mercenários treinados pela Rússia na Bósnia e em Montenegro são parte integrante da estratégia militar sérvia para a região. É uma cópia carbono das ações pré-invasão de Putin na Geórgia e na Ucrânia”, diz Bajrovic. “Oficiais do governo de Vucic declararam abertamente que a Sérvia usará força militar em sua vizinhança, incluindo uma ameaça que Vucic lançou contra as tropas da Otan no Kosovo recentemente”.

A eventual ação militar na Bósnia teria um efeito imediato, que seria o fim das ambições da Sérvia de ingressar na UE. “Mas Vucic parece já ter desistido da adesão à UE“, diz Serwer, que acrescenta. “A situação é perigosa. A Otan precisa deixar claro que não tolerará a mobilização de forças sérvias contra seus vizinhos, como fez contra o Kosovo, que não tem exército”.

A questão no Kosovo é particularmente espinhosa. Sérvia e Kosovo mantêm péssimas relações desde a guerra travada em 1998 que separou o território do país báltico. Após sua declaração unilateral de independência de Belgrado, em 2008, o Kosovo hoje tem o reconhecimento dos EUA e da UE, enquanto Sérvia e Rússia ainda reconhecem o território como sendo sérvio.

No caso da Bósnia, a questão étnica gera uma tensão interna que remete ao Acordo de Paz de Dayton, que acabou por dividir o país em duas entidades políticas independentes: a Federação da Bósnia-Herzegovina, a cargo de Bosniaks (muçulmanos) e croatas, e a República Srpska, controlada por sérvios étnicos. Uma eventual invasão sérvia teria como objetivo colocar sob o domínio de Belgrado o território de maioria sérvia.

A retomada do terrorismo islâmico

Ações antiterrorismo globais enfraqueceram nos últimos anos os dois principais grupos terroristas do mundo, o Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda. Já a pandemia de Covid-19 fez cair o número de ataques em regiões sem conflito, devido a fatores como a redução do número de pessoas em áreas públicas. Nesse cenário, quem ganhou espaço no noticiário foi o Estado Islâmico-Khorasan (EI-K), braço do grupo extremista no Afeganistão e responsável por ataques violentos no país desde que o Taleban assumiu o poder. Em 2022, o EI-K pode se tornar um ator global no cenário do terrorismo islâmico, situação preocupante se vier acompanhada da retomada do EI e da Al-Qaeda.

Segundo Colin Kahl, terceiro nome na hierarquia de lideranças do Pentágono, em breve o EI-K e a Al-Qaeda terão condições de empreender ataques contra os Estados Unidos. Quando fez a previsão, em pronunciamento perante o Congresso norte-americano, em outubro de 2021, Kahl disse que o prazo para os dois grupos ganharem força global seria de até um ano.

“A comunidade de inteligência avalia atualmente que tanto o EI-K quanto a Al-Qaeda têm a intenção de realizar operações externas, inclusive contra os Estados Unidos. Mas nenhum dos dois tem atualmente a capacidade de fazê-lo. Podemos ver o EI-K gerar essa capacidade em algo entre seis e 12 meses”, disse Kahl.

Dois combatentes do Estado Islâmico-Khorasan capturados após ataque a hospital de Cabul: ameaça global (Foto: reprodução/Twitter)

A preocupação com a violenta facção afegã não é nova em Washington. Durante audiência no Congresso, no mês passado, a principal autoridade contraterrorismo do governo, Christine Abizaid, disse que o EI-K parecia se aproveitar da notoriedade que ganhou após o ataque ao aeroporto de Cabul. “Será que ele se tornará mais focado no Ocidente? Ele se tornará mais focado na nossa pátria do que antes?”, questionou ela à época.

Segundo o general Kenneth McKenzie, comandante das forças dos EUA no Oriente Médio e no Sul da Ásia, o grupo se fortaleceu ainda mais desde que o Taleban assumiu o comando do país, em parte por erros dos atuais governantes. Entre suas ações, os talibãs esvaziaram prisões e libertaram milhares de apoiadores do EI, muitos dos quais se juntaram às fileiras do EI-K. “O que vemos é o EI recém-rejuvenescido”, disse ele.

Paralelamente ao crescimento do EI-K, as duas maiores organizações terroristas do mundo ganharam relevância na África, graças à ação de grupos afiliados regionais, como Al-Shabaab e Boko Haram, ligados à Al-Qaeda, ISWAP e EIGS, facções do EI. A expansão em muitas regiões do continente africano é alarmante e pode marcar a retomada de força global dessas duas organizações, algo que em determinado momento tende a refletir em regiões sem conflito, como Europa e Estados Unidos, alvos preferenciais de ataques terroristas islâmicos.

No ano passado completaram-se duas décadas de combate ao terrorismo islâmico no mundo, missão que teve como marco inicial a queda das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Embora a ação antiterrorista tenha avançado, uma vitória definitiva está distante. Como atesta a especialista em questões de segurança Elena Pokalova. “Precisamos aumentar a cooperação internacional em contraterrorismo e exercer um compromisso confiável com aqueles que desejam estar conosco na luta contra o terrorismo. Tal como há 20 anos, o terrorismo continua a ser uma ameaça transnacional e não podemos combatê-lo sozinhos”.

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